No início de março ocorreram as premiações do Oscar, a celebração do cinema dos Estados Unidos. Nesse ano, duas coisas chamaram atenção: o filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo recebeu sete prêmios e um filme sobre Alexei Navalny recebeu o prêmio de “melhor documentário”.

Alexey Navalny é um oposicionista russo que com frequência é elevado na grande mídia ocidental ao status de “líder da oposição russa”. Candidato à vários cargos desde os anos 2000, Navalny se estilizou com um liberal em uma cruzada contra a corrupção, ganhando força na frente de forças inclinadas ao Ocidente. Apesar disso, em sua carreira política Navalny também já se colocou como um nacionalista anti-imigração, defendendo que a Rússia parasse de “alimentar o Cáucaso” e fazendo propagandas em que muçulmanos eram comparados com insetos.

Essa fase anti-Cáucaso de Navalny não passou desapercebida para alguns elementos do jornalismo progressista no Brasil, que criticaram o Oscar por premiar um filme “cujo herói é um racista de extrema direita”. Por mais que os conflitos culturais internos da Rússia mereçam uma atenção própria, chama atenção a projeção midiática simultânea do espectro de Navalny no Oscar com a figura do neonazista russo Denis Nikitin, que comanda um grupo de forças voluntárias lutando ao lado do exército ucraniano.

Ambos compartilham o lema “Rússia para os russos”, mesmo que isso se custe decepar a Rússia de algumas de suas partes onde vivem pessoas que eles consideram indesejáveis. Os dois estão do lado da Ucrânia, como podemos ver nos posicionamentos da Fundação Anti-Corrupção de Navalny.

Na Ucrânia se formou uma frente de oposição ao Estado da Federação Russa em que se misturam liberais fiéis ao Consenso de Washington, neonazistas diversos, propagandas do liberalismo europeu no estilo bandeira LGBT e um crescente número de mercenários ocidentais, tudo no mesmo lugar ao mesmo tempo.

Essa frente não é só uma união fortuita de pessoas diversas que não gostam do Putin, mas se organiza de acordo com uma lógica.

O nacionalismo ucraniano passou por uma evolução ideológica nos anos 30 influenciada pelo nazismo, se tornou anti-russo e colaborou com os alemães nos anos 40. Derrotados, se reorganizaram no exílio durante a Guerra Fria e colaboraram esforços militares anti-comunistas transnacionais. Com a queda da URSS nos anos 90, voltaram a ser uma força na Ucrânia, uma força determinada a expurgar o país de seu passado soviético e tudo o que ele tem de russo, o que incluí grande parte da população – daí a continuidade do seu caráter fascista. Desde então, fizeram algumas alianças com forças liberais, como ocorreu durante a Revolução Laranja, em função da sua orientação anti-russa, e assim foi também em 2014, quando ocorreu o Euromaidan e os fascistas, como linha de frente, ganharam força.

Além do vetor anti-russo da política interna ucraniana, foi a hegemonia ocidental que facilitou essa aliança entre liberais e fascistas. Os Estados Unidos decidiram seguir uma estratégia de combate à Rússia que privilegiou essa aliança, que também possuí eventuais pontos de encontro ideológico (como o desprezo pelo povo russo ou o já citado desejo de fragmentar a Rússia).

Esse encontro estratégico não é fortuito ou realmente muito estranho. Sim, a própria Rússia é um país onde figuras do comunismo convivem com figuras da monarquia. Não acho errado se aproveitar disso na hora de falar sobre o pais, enfatizando as contradições e até brincando com uma certa falta de sentido, mas alguns exageram, como se a Rússia fosse um grande absurdo, quando não é.

Desde os anos 90, no Estado e na sociedade da Rússia se desenvolveram correntes de pensamento que entenderam que os Estados Unidos não queriam só mudar o regime soviético, mas usufruir de um triunfo contra a Rússia. A partir daí, até comunistas entenderam que a destruição neoliberal dos anos 90 era uma ameaça maior do que direitistas defensores da ideia de “Grande Estado”. Setores da oligarquia se viram ameaçados por sua associação ao liberalismo, que como na Ucrânia tem uma inclinação adesista em relação à hegemonia global dos Estados Unidos. Assim temos a situação estratégica que define boa parte da correlação de forças na Rússia.

O sucesso político do conservador estatista Vladimir Putin parece irritar profundamente alguns liberais na Rússia, ainda mais os mais jovens – o fato do Partido Comunista da Federação Russa ser a segunda força no país também não ajuda. Essa irritação parece ter estimulado expressões ideológicas de desprezo pelo povo e pela história russa, como um povo bruto, submisso e coisas desse gênero. Isso pode contribuir para a fundamentação subjetiva de uma alternativa terrorista: é certo para todos, porém, que os liberais russos desde 2014 optaram por apoiar a Ucrânia e adotam a estratégia que acredita na necessidade de uma vitória militar contra a Rússia.

Alguns liberais até tentam romper a preferência dos ocidentais por Navalny tentando se mostrar mais combativos, como é o caso do Conselho Cívico da Rússia na Ucrânia, que se apresenta como a frente política do corpo armado de Nikitin, liderado pelo liberal  Denis Sokolov (que é ligado a Free Russia Foundation, o que já coloca os Estados Unidos no meio).

Não acredito que Navalny gostaria de estabelecer um regime francamente autoritário ou que fosse uma imitação dos regimes fascistas do século XX, a própria Ucrânia fornece um modelo mais atual. Não é como se seu regime não fosse fazer transformações orientadas pelo liberalismo, mas o quanto essas transformações dependerão de uma violência que contemple os fascistas na equação? Lembremos que Hayek pensava na necessidade de reformas institucionais ativas para fazer funcionar o ideário neoliberal (ele não vem “naturalmente”) e a Rússia experimentou esse choque nos anos 90.

Se tomarmos como exemplo um tradicional grupo dos nacionalistas ucranianos, a UNA-UNSO (Assembleia Nacional Ucraniana), veremos uma postura menos preocupada com a criação de um Estado ideológico do que com a destruição de um outro identificado como inimigo, o “Outro” russo que mora não do lado da fronteira, mas na própria vizinhança e supostamente impede a Ucrânia de ser um “país europeu normal” ou como os Estados Unidos.

Aqui caberia um certo paralelo com o bolsonarismo brasileiro, despreocupado com modelos fascistas dos anos 30 mas ideologicamente disposto à violência em nome de uma utopia inspirada em Miami.

Os neonazistas na Ucrânia serviram como tropa de choque para liberais pro ocidentais, capazes de implementar reformas voltadas para o sistema europeu e abertura econômica (efetivamente aumentando a entrada de capitais norte-americanos no país). Mesmo sem receber muitos votos foram premiados com posições estratégicas e com a vantagem da adoção do projeto nacionalista anti-russo pelos liberais. Essa tropa de choque reprimiu o conjunto de forças que estavam no caminho desse processo, espalhando terror contra os que simpatizavam com a Rússia, defendiam o legado soviético ou eram uma força de esquerda fora do mundo universitário.

Foram esses forças que serviram como voluntárias para reprimir e combater os que se levantaram no leste do país contra a transformação que seria promovida pelos preferidos de Washington. Mesmo que a população local não fosse necessariamente alvo do racismo que hoje dirigem contra as “hordas asiáticas” (a propaganda reclama de chechenos e buriates que “chegam com as tropas russas”), a violência contra ela era justificada por um desprezo ideológico similar ao sustentado pelos liberais mais ressentidos contra a população russa, como um peso a ser desfeito.

Mais do que uma coincidência de interesses, temos uma organização estratégica que se converte em articulação ideológica.

Se tiveram alguma preocupação com esses fascistas, quando muito os liberais tentaram salvar a própria face, nem que fosse defendendo seus parceiros problemáticos, como vimos na campanha internacional para reabilitar a reputação do Regimento Azov. Também tentaram diluir a questão lançando acusações contra os russos, se possível expondo algum mercenário de passado duvidoso ou tentando comparar um esquadrão de reconhecimento russo de 15 pessoas com o movimento político que se construiu ao redor do Azov.

Talvez a realidade esteja aberta para um número maior de opções e a história nos reserve surpresas; de fato, o próprio Navalny desde o início de sua carreira política como liberal do Yabloko já passou por algumas transformações e mais recentemente realizava uma comunicação mais populista em sua militância anti-corrupção, explorando mais a desigualdade social. A situação estratégica, porém, não vai muito além do que descrevemos até aqui.

Alguns querem viver nos Estados Unidos, mas não querem migrar. Qual vai ser o custo de implantar os Estados Unidos na Rússia? Como sobrepor uma realidade á outra muito diferente, como encaixar esses moldes distintos, como conjurar um edifício ianque sobre uma terra russa?

Eis a “Global America“, disposta a mobilizar neonazistas para a manutenção da sua hegemonia, como um gládio que brandem no peito da Europa, num quadro que Moniz Bandeira chamou de “Desordem Mundial”.

No coração dessa “Global America”, no mesmo Oscar que premiava o filme sobre Navalny, tivemos a multi-premiação do filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, uma comédia que trabalha com temas da migração asiática nos Estados Unidos. O ritmo e a estética do filme parecem ter desagradado muitos críticos, entretanto. Mesmo assim o filme recebeu muitos elogios informados por uma mentalidade progressista preocupada com diversidade e representatividade.

Vendo defesas do filme, me surpreendeu uma tendência de tratar os críticos de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo como portadores da hegemonia ocidental. Mas não é o Oscar um dos cumes da hegemonia dos Estados Unidos, do seu poder cultural e ideológico? Do ponto de vista ideológico, não é o Oscar a premiação hegemônica que celebra a auto imagem ocidental de terra da tolerância e vanguarda da democracia, o que inclusive está inscrito na celebração da figura de Navalny e outros gestos contrários à Rússia?

A leitura da problemática sobre o filme pode recorrer a uma compreensão diferente de hegemonia, falando de fenômenos culturais eurocêntricos, porém existe uma disputa entre as leituras críticas para determinar a posição de reveladora. A lógica de quem fala da hegemonia branca como fenômeno cultural pode ser liberal-progressiva em um sentido bastante estrito, daquela que entende que existem instituições poderosas (o Oscar) que são controladas pelos esclarecidos (“iluministas”) e desafiam “estruturas” que estão difusas na sociedade (a tal resistência expressa pelos críticos incomodados com o filme). Perdem de vista, porém, que há um fluxo de transformações culturais no seio do capitalismo e que a estrutura hegemônica existente – literalmente econômica, militar e expansionista – não existe a despeito desse tipo de gestual progressivo, mas existe junto dele.

Os Estados Unidos não está abalados por uma revolução cultural, por um Oscar que despertou para a diversidade, a premiação de um filme como um Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não é uma revolução no sentido estrutural-ideológico daquela cerimônia. Só enxergam uma América Branca anglo-saxã, quando os Estados Unidos da América, o seu sistema econômico e sua máquina política já estão um pouco além disso.

Alguns progressistas de fato entendem isso, mas infelizmente também passam a desejar que o resto do mundo seja americanizado. Como os reformadores russos que decidem lutar contra a realidade para transformá-la de acordo com o modelo dos Estados Unidos, a própria percepção de tempo gira em torno de uma temporalidade e de um progresso norte-americano. As percepções passam a ser determinadas pelo ritmo da cultura dos Estados Unidos, incluindo a percepção de espaço globalizado que se orienta pelo poder dos EUA: vide a Base de Guantanamo, um pequeno ponto fora do território dos Estados Unidos, em uma nação soberana que recusa essa presença e onde foram aprisionadas pessoas sequestradas no mundo inteiro, um ponto na extensão de uma linha de poder que está em todo lugar ao mesmo tempo.

Mesmo a justiça internacional não fugiu dessa regra, uma instituição que teoricamente serviria a um ideal liberal político distinto do unilateralismo dos Estados Unidos mas na prática serviu como extensão da hegemonia ocidental no tempo e no espaço.

E tanto com as armas duras que usam na Ucrânia, como com as armas leves que usam no Oscar, os Estados Unidos lutam uma guerra pela percepção do tempo e pela extensão dos espaços.

Essa é a “Global America” que reina sobre a expansão global e imperialista do capitalismo, o que não aconteceria sem seu aparato político-militar, cultural e ideológico – os Estados Unidos não são apenas uma potência imperialista de sucesso entre outros atores, mas a força organizadora do capitalismo internacional e das transformações jurídicas, políticas e econômicas que o acompanham. Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo.



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *