Pois, em todas as cidades, existem esses dois humores diversos, que nascem da seguinte razão: o povo deseja não ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo; desses dois apetites opostos, nasce nas cidades um destes três efeitos: principado, liberdade ou licença.
Nicolau Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: WMF, 2017, p. 45.

Estudar Maquiavel e seus intérpretes é um caminho para refletir sobre o funcionamento da política. A própria ideia de “Realismo Político”, normalmente ligada a ênfase no conflito como motor da política, deve muito (quase tudo?) a Maquiavel.

Atores diversos perseguem seus interesses na sociedade e entram em confronto na política. Uma das divisões entre esses atores seria entre os grandes e os populares.

A contradição entre “os grandes e o povo” aparece mais de uma vez na obra de Maquiavel – em O Príncipe, na sua revisão da história romana e nos seus comentários sobre a política de Florença – e já rendeu muita discussão.

Esses dois polos não designam apenas dois tipos de atores, mas dois humores cujo conflito movimenta a política. “Mais do que objetos determinados” são “pulsões coletivas permanentes” (CARDOSO, 2022, p. 46). Podemos chamar essas pulsões de “forças”, como algo superior aos indivíduos que elas movimentam.

A ideia de “humores” usada por Maquiavel remete a Galeno e serve de metáfora da cidade como um “corpo” – essas pulsões são os “fluídos” que caracterizam a vida coletiva.

Os grandes querem dominar, querem crescer, ampliar o poder. O povo, os humildes, quer ser livre da opressão dos grandes, paz ou até uma liberdade ampliada. Os diversos leitores de Maquiavel vão enfatizar consequências diferentes dessa ideia do “secretário florentino”. De toda forma, essa perspectiva conflituosa é uma lente poderosa para ler a política.

A ordem política passa pelo confronto e pela barganha entre as elites e as massas do povo.

Em alguma medida podemos considerar que Maquiavel pensa em uma luta de classes com um aspecto econômico – a vontade de acumular – cumprindo um papel na luta política. Intérpretes importantes de Maquiavel como Claude Lefort e Sérgio Cardoso já notaram isso. Os que têm riquezas querem proteger suas riquezas e ampliá-las, enquanto os desprovidos tentam sobreviver e evitar as consequências mais graves de sua privação, desfrutando a vida dentro do possível.

É verdade que Karl Marx foi muito mais longe que Maquiavel na ideia de luta de classes e não podemos “forçar” a leitura econômica na concepção maquiaveliana, mas a reflexão nesses termos não deixa de ser relevante. A política surge dessa tensão entre poderosos e o povo, com a resistência do povo fazendo que surja a política e os políticos como um freio universal aos interesses de cobiça e expansão dos poderosos.

É possível especular com uma visão tripartite dos atores na obra de Maquiavel: os grandes, o povo e os políticos. Maquiavel opera essa divisão de alguma forma em “O Príncipe”, já que o príncipe é um ator que se depara com os grandes e com o povo como atores distintos dele, podendo se valer do apoio de um ou de outro, como pode aterrorizar mais um do que outro. Isso é particularmente forte quando Maquiavel fala de um tipo de “principado civil” (capítulo IX), mas essa distinção do príncipe em relação aos nobres e aos populares se repete no decorrer da obra, a exemplo dos alertas para lidar com os nobres e endinheirados. O príncipe pode crescer “pelo favor do povo ou pelo favor dos grandes” (MAQUIAVEL, 2017, p. 45).

De forma um tanto moderna, há uma distinção do titular da autoridade estatal e é importante que ele “aparente” coisas para seus súditos, em especial para o povo, o que não deixa de ser uma forma de colocar o problema da legitimidade. Quando a discussão não é sobre principados, mas sobre repúblicas, também aparecem os cidadãos destacados que se dirigem ao povo ou aos patrícios como estadistas, estão em uma condição de políticos.

Não quero estender o texto me debruçando no que seria uma parcela importante da interpretação “elitista” da obra de Maquiavel – como mencionado por Cardoso e discute Adverse – mas cabe citar interpretações como de Leo Strauss e Harvey Mansfield: o governo sempre está nas mãos dos políticos, o povo não pode governar diretamente e depende dos políticos. Assim reforçamos a visão de que os políticos se colocam como “agentes” da força popular que regulam o apetite de ganho e dominação dos grandes.

Se os políticos não são os “agentes” a princípio, eles podem ser tratados como produtos da reivindicação popular contra a cobiça e o domínio essencialmente privado dos grandes, daí surge a discussão sobre o papel “politicamente produtivo” do “desejo popular negativo” como a base da universalidade da lei contra o particularismo dos poderosos (CARDOSO, 2022, p. 65). Mesmo que se aceite que o povo não governa, o seu papel de resistir ou moderar a dominação seria a origem da política.

Pelo menos assim seria nos regimes que podem supostamente ser denominados “políticos” em contraposição aos regimes que seriam “despóticos” (CARDOSO, 2022, p. 57).

Caso não aceitemos uma divisão entre políticos e a elite como válida na obra de Maquiavel, ou que a consideremos improdutiva do ponto de vista da reflexão, essa discussão sobre os humores também pode ser feita em uma perspectiva de um realismo depurado da dimensão econômica, concentrando na política e mais próximo do que seria uma teoria das elites.

Continua sendo fundamental a constatação de que o conflito entre os pólos é produtor da ordem política. O entendimento da ordem política pela leitura maquiavélica não pensa na resolução do conflito entre esses dois polos pela “boa ordem” que atende e equilibra a todos por sua sabedoria ou perfeição, mas em como esse conflito se mantém e molda as instituições.

O conflito não está restrito a uma disputa dentro das instituições, contido por uma ideia de “regime misto” e pacífico. A pressão do extraordinário, a exceção, seja das facções, da elite ou do povo, movimenta a política. Assim ocorre em situações em que um grupo tenta mudar o status quo ou aumenta a insatisfação popular ao ponto de gerar tumultos – o jogo está além das instituições.

O próprio tumulto causado pela insatisfação popular pode servir de base para que um grupo derrube outro, para que aconteça uma reciclagem nas elites.

O grupo que toma o poder pode fazer isso oferecendo para o povo um “pacto” melhor. Ou pode só agarrar a oportunidade por ter mais força que os outros para assumir o comando e resistir ao tumulto. A oportunidade que o tumulto popular cria para a ascensão de uma nova elite ou reordenamento do sistema pode ser descrita usando expressões de Helton Adverse como a “plasticidade do humor popular” e sua “indeterminação originária” (ADVERSE, 2007, p. 45-46).

É possível fazer leitura similar para pensar de uma maneira filosófica em comportamentos eleitorais como o “voto de protesto”, mas devemos ter uma vista geral que contemple especialmente tumultos ou momentos revolucionários. São momentos em que o povo, como a força genérica dos “muitos”, das massas, pode exercer um poder de veto ao poder do alto – e veto aqui é uma expressão adequada, pois a discussão de Maquiavel coloca o tribunato e sua origem como elemento central da discussão sobre o papel do povo na República romana, quando o povo se retirou ao Aventino para conquistar o direito ao tribuno popular, esse que tinha um poder de veto.

Não se implica aqui que todos que comandam são iguais. Na verdade, a atitude em relação ao povo vai diferenciar os que comandam e os sistemas. Quem governa pode abrir mão de autoridade ou de recursos, riqueza; isso é uma forma de “negociar” com o povo.

Isso trouxe algumas consequências para os que defendem um ideal republicano: o povo é um “guardião da liberdade”, a ameaça popular faz uma sombra sobre as elites e ao mesmo tempo o povo deve ter em conta que depende da ação de agentes da própria elite, capazes de mediar os seus desejos conferindo conteúdo político.

As ações que são “manifestações do desejo de dominação” implicam nas expressões de resistência (CARDOSO, 2022, p. 50), não uma sucessão mecânica de ação-reação, mas um encadeamento entre os contrários em que a própria negação do desejo de dominação se transforma e evolui para a pulsão de ordenamento, dominação – a pulsão popular quando se positiva na forma de participação nas instituições ganha um conteúdo político.

Na obra de Maquiavel são elogiados os estadistas que conseguem controlar as elites e direcionar o humor popular para a construção política.

Não miramos, no entanto, as consequências ideológicas desse Maquiavel, como fazem os que pretendem renovar o ideal republicano: nem é meu objetivo promover ou tomar partido no debate entre os intérpretes do “Maquiavel republicano”: usando o sumário de Adverse, de um lado o Maquiavel que faz um “movimento de retomada e reelaboração do republicanismo clássico” (Skinner é possivelmente o maior representante dessa leitura), um pensamento voltado para o cidadão-soldado e a liberdade pública baseada na “virtude”, do outro a tese da cidade dividida, da vida cívica conflitiva que fundamenta uma ordem livre, como faz Lefort e do qual Sérgio Cardoso parece se aproximar.

Além desses debates, é notável como temos aqui uma ferramenta para pensar na evolução da ordem política a partir do conflito. É uma questão de método, mas para além de um olhar analítico, é uma forma de entender a intuição dos momentos políticos pelos atores que estão inseridos neles, na rua ou nos gabinetes, nos tumultos ou nas assembleias.

Se a atuação das elites vem sempre como uma atuação positiva e particular enquanto a atuação do povo vem como a negação universal, que contrapõe esses objetivos exigindo pelo menos que eles sejam reformulados em termos universais que devem ocupar a posição simbólica do universal do qual o poder se faz representante provisório (CARDOSO, 2022, p. 62), toda elite política para atingir seus objetivos precisa passar pela resistência e pelo “filtro” das massas; levando isso para outro leitor de Maquiavel, Antonio Gramsci, o poder hegemônico precisa se formular como uma proposta para todos, para a universalidade, não podendo se restringir em uma formulação de interesses particulares e imediatos.

Por mais que uma perspectiva de ordem pública exista em Maquiavel, a sua ousadia o faz colocar essa ordem como dependente de uma história de tumultos: ao falar da história de Roma ele não exclui os tumultos e as disputas plebeias contra o Senado como agitações desagregadoras mas as coloca como uma base para a formação da grandeza romana. Mesmo que os tumultos populares possam ter más consequências para a ordem política (gravíssimas, na leitura que Maquiavel faz sobre Florença na sua época ou sobre Roma na época da guerra civil), em Maquiavel a história da ordem política passa por eles como eventos constitutivos.

Lefort nos faz, portanto, considerar o que há de mais inovador, e mesmo revolucionário, no pensamento de Maquiavel: a ideia de que a ordem não se separa da desordem dos conflitos civis que dilaceram a sociedade; a ideia decorrente de que não há constituição perfeita, acabada, e de que toda comunidade “recobre um rompimento” (…) entre “humores” de natureza contrária, que politicamente se definem em oposição, que se replicam, na forma do positivo (desejo de bens e de poder) e do negativo (desejo de lei e de liberdade) (…)
Sérgio Cardoso, Maquiavelianas: lições de política republicana, São Paulo: Editora 34, 2022, p. 46.

Fontes

ADVERSE, Helton. MAQUIAVEL, A REPÚBLICA E O DESEJO DE LIBERDADE, Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(2): 33-52, 2007.

CARDOSO, Sérgio. Maquiavelianas: lições de política republicana, São Paulo: Editora 34, 2022.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, São Paulo: WMF, 2017.

BIGNOTTO, Newton. Lefort and Machiavelli in Claude Lefort Thinker of the Political, org. Martin Plot, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013.

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