A elite palestina antes da proclamação do Estado de Israel

Quando os britânicos assumiram o poder na região geográfica conhecida como Palestina – ou como alguns chamavam, o “sul da Síria” – eles estavam longe de encontrar um deserto. Pelo contrário, encontraram um local com uma história de milhares de anos e com uma elite própria, que não era um grupo social que remete à tempos imemoráveis mas era produto das reformas tardias do Império Otomano a partir do Tanzimat – um processo de centralização, burocratização e mudanças legislativas como em questões de propriedade de terra. Weldon Matthews fala sobre essa elite em seu livro Confronting an Empire, Construction a Nation – Arab Nationalists and Popular Politics in Mandate Palestine (MATTHEWS, 2006, pp. 36-37):

1. A elite política palestina durante o mandato era um grupo pequeno e diversificado que ganhou influência por meio das reformas tardias do Império Otomano e da integração na economia global.

2. A Palestina exportava produtos agrícolas para financiar a importação de produtos europeus por meio de cidades portuárias, com empreendedores locais envolvidos com a produção agrícola, o serviço de arrecadação de impostos, o serviço bancário e o comércio. A burocracia, a profissão legal, a propriedade de terras e o comércio não constituíam classes distintas. No contexto palestino, eles serviam como o ponto de contato da produção agrícola com capitais externos. Os coletores de impostos eram banqueiros que emprestavam dinheiro para o Estado em troca do direito de coletar impostos em uma determinada região ou grupo de pessoas por um período de tempo. Com o avanço da centralização e as transformações econômicas, as fazendas de impostos – grupos de pessoas subordinadas a um arrecadador – se converteram em propriedade agrária e houve um desenvolvimento na direção da propriedade privada (não-feudal, alodial). Os grandes proprietários de terra residiam principalmente em cidades portuárias, refletindo a importância econômica dessas cidades como ligações com os mercados europeus e regionais.

3. Conforme o sistema econômico global absorvia a Palestina, a terra agrícola se tornava uma mercadoria para investimento de comerciantes, levando à expansão das terras cultivadas antes da Primeira Guerra Mundial; aqui vemos um processo reconhecido na expansão do capitalismo em outros lugares – relações feudais de vínculo com a terra diminuem, a terra passa a ser comercializada, a pequena produção da unidade familiar camponesa é prejudicada (PAPPE, 2011, p. 56).

4. A aquisição de terras na Palestina não se limitava a árabes palestinos e sionistas, mas também incluía residentes de outras cidades como Damasco, Alexandria e Beirute. A mudança nas leis em prol de um mercado privado de terras estimulou a especulação e “o movimento sionista, chegando na Palestina precisamente nesse momento, rapidamente entendeu a situação e começou a explorá-la” (PAPPE, 2010, p. 63). Nessa elite além dos notáveis muçulmanos também se destacavam algumas famílias cristãs, incluindo católicos de Beirute e ortodoxos de Jerusalém. Também se formaram alguns magnatas judeus em Jerusalém a partir da população judaica existente antes da colonização massiva do sionismo. Esses grupos religiosos não-muçulmanos tiveram uma vantagem por não se submeter às leis islâmicas de proibição à usura. O sionismo também se desenvolveu como base para outros atores econômicos por ter acesso à contribuições, créditos e investimentos ocidentais inacessíveis para os árabes (MORRIS, 2008, p. 15), incluindo aí empréstimos do governo britânico.

5. No centro dessas mudanças e desse vínculo internacional estava a citricultura, especialmente os pomares de laranja, por ser uma forma de agricultura intensiva em capital que atraiu investidores árabes e judeus. Era impossível plantar laranjas como um negócio para as famílias camponesas – a terra demandava investimento, conhecimento técnico e precisava de tempo. A produção de laranjas dependia do trabalho sazonal nos pomares, que era um trabalho de jornadas assalariadas.

6. Proprietários de terras e arrecadadores de impostos atuavam como intermediários entre a população camponesa e o estado otomano, com relações que misturavam os mediadores do mercado, as obrigações legais e laços de apadrinhamento; no seu papel intermediário não só serviam como braço do Estado otomano, mas em alguma medida podiam representar interesses da população subordinada. Essa elite mais ligada ao capitalismo internacional contrastava com a elite rural tradicional dos sheikhs que ela substituiu, transformação que foi tratada por Ilan Pappe (PAPPE, 2010, p. 61) – a nova elite nasceu das reformas otomanas. Não que a elite pós 1850 seja totalmente diferente da elite do período anterior, já que muitas vezes falamos de famílias de notáveis que se adaptam: por exemplo, uma reação ao processo de tomada das instituições religiosas pelo Estado foi uma re-apropriação delas por seus responsáveis e patrocinadores, que puderam assim adquirir sua própria base de capital (PAPPE, 2010, pp. 62-63; PAPPE, 2011, p. 10).

7. A elite que se destacou na atuação política nacionalista do século XX não era livre de vínculos com a economia agrária, no entanto era mais urbana e teve sus fileiras ocupadas por elementos mais “intermediários”, que tiveram acesso á educação moderna, passando pelas academias otomanas, Al Azhar, ou por institutos cristãos de ensino superior, fora aqueles que tiveram educação europeia (MATTHEWS, 2006, pp. 39-40). Em outro movimento “clássico” do processo de desenvolvimento, as reformas otomanas serviram de base para a formação de uma classe média e de uma elite baseadas no crescimento da burocracia e da complexidade econômica, cuja porta de entrada era a educação (PAPPE, 2010, pp. 64-65). Matthews observa que cristãos ascenderam rápido no sistema colonial, o que é corroborado por Morris (2008, p. 12-13) que fala de uma presença desproporcional.

8. Apesar do destaque da elite urbana educada, 70% dos palestinos viviam no campo e a Palestina não tinha cidades tão grandes como Damasco ou Cairo (MATTHEWS, 2006, p. 40), o que deve justificar o poder dessas cidades como polo de atração do movimento nacionalista árabe que atuou na Palestina. Faltava comunicação (telégrafo) entre as vilas e os camponeses pobres sofriam com dívidas frequentes. Existiam referenciais de identidade além da família estendida e da religião nos nomes das confederações tribais árabes pré-islâmicas(os Qays e os Yaman), redes de solidariedade que serviam para a ação política e transcendem as filiações e consanguinidade que normalmente associamos a ideia de “tribalismo” (MATTHEWS, 2006, p. 41). Illan Pappé também se refere a isso em sua história da Palestina moderna (PAPPE, 2010, p. 61).

Fontes

Morris, Benny. 1948: The First Arab-Israeli War, Estados Unidos: Yale University Press, 2008.

Pappe, Ilan. A HISTORY OF MODERN PALESTINE, Cambridge: Cambridge University Press, 2 ed., 2010.

Pappe, Ilan. The Rise and Fall of a Palestinian Dynasty – The Husaynis 1700–1948, Londres: Saqi, 2011,

Matthews, Weldon C. Confronting an Empire, Constructing a Nation: Arab Nationalist and Popular Politics in Mandate Palestine, Londres: I. B. Tauris, 2006.



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