A independência de facto do Kosovo em relação ao estado sérvio se deu pela combinação da luta armada do grupo “Exército de Libertação do Kosovo” (UÇK/KLA) com a intervenção militar da OTAN e a criação de uma Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK). O Movimento Autodeterminação (Lëvizja Vetëvendosje) surgiu da Kosova Action Network, rede que fazia protestos pedindo a independência no exterior. Depois o movimento passa a liderar a oposição ao governo da Missão das Nações Unidas, o que faz através de ação direta chamativa e protestos massivos. Nesses protestos fundaram um novo movimento chamado Autodeterminação em junho de 2005.


O movimento evoluiu para partido político em 2010. Outros partidos se juntaram à sua estrutura, como o Partido Socialista do Kosovo. Assim surgiu uma organização com “dupla personalidade”: movimento e partido. O partido não se limita a uma espécie de movimento civil pela independência do Kosovo, pois é enfático no seu nacionalismo albanês. O líder Albin Kurti defende um referendo para unificação do Kosovo com a Albânia ou, na ausência dessa possibilidade, outros caminhos que levem para a integração entre esses territórios. Em 2007 o movimento conseguiu mobilizar 7 mil pessoas para tomar um complexo mineração pedindo a remoção de um político sérvio do governo kosovar por causa de um insulto. Seus membros também não costumam demonstrar respeito pelos símbolos estatais do Kosovo, preferindo os símbolos albaneses. O partido também defende a criação de um sistema educacional e um regime energético em comum com a Albânia. 

O partido se mantém vivo com seus métodos de ativismo, que persistem.  Devemos entender a metodologia ativista aqui como algo relativamente mais espontâneo do que a institucionalidade partidária, em que os ativistas não são eleitos e se organizam pragmaticamente em prol de uma atividade de impacto. Por mais que a evolução institucional do movimento para um partido reduza esse aspecto (até pela realidade da política eleitoral e parlamentar), é relevante atentar para ele como forma de agitação e propaganda do órgão partidário. A capacidade de fazer manifestações e ações diretas no Kosovo e em outros países do mundo serve como uma ferramenta de propaganda que até então confere prestígio ao partido no contexto da política interna. O partido Vetëvendosje se mostra mais efetivo na capacidade de mobilizar esse tipo de ação do que o mais tradicional Partido Democrático do Kosovo (PDK), o poderoso partido formado pelos quadros militares do UÇK depois da guerra e principal rival do Vetëvendosje no momento, ou que o partido nacionalista de direita Liga Democrática do Kosovo (LDK). Nesse campo, a ideia de populismo também pode ser aplicada adequadamente ao Movimento Autodeterminação: uma política de agitação de uma consciência ampla do “povo” contra o “establishment”

Entre suas bandeiras figura da “igualdade” a ser implementada através de um “Estado social”, argumentando que a redistribuição de riqueza além de justa é uma facilitadora da demanda agregada. O partido também dá ênfase a uma ideia de “desenvolvimentismo”. No contexto da política kosovar, em especial do ponto de vista econômico, o partido pode ser chamado de esquerda. Defendem aumento de direitos  e benefícios sociais, subsídio para clubes esportivos, educação superior pública e gratuita, fortalecimento dos sindicatos, bem como um papel mais protagônico para o Estado na economia.  Uma alternativa é chamar o programa sócio-econômico de “social-democrata”; no campo político o movimento não mostrou uma proposta de reforma autoritária do sistema (apesar da atitude autoritária em relação aos sérvios que assumiu no governo em 2023), enfatizando ideias mais voltadas para a democratização e fortalecimento do judiciário (se referindo especialmente à instituição do Procurador-Geral do Kosovo). O partido também é defensor da democracia participativa, dizendo que a democracia representativa “não basta” e favorecendo ainda o uso de referendos, atualmente proibidos pela constituição do Kosovo.

A postura anti-estado do movimento é particularmente destacada não só por sua denúncia incessante da corrupção escandalosa que de fato se abate sobre a elite política kosovar, mas por ele partir do pressuposto de que o estado kosovar é ilegítimo por não realizar a tarefa histórica da independência e da soberania. Quer dizer, além do Estado ser dividido entre clãs e camarilhas corruptas, ele seria um Estado incompleto no entendimento do movimento que rejeita as negociações e compromissos que formaram a entidade política kosovar, uma entidade dependente de um arranjo institucional multinacional envolvendo especialmente os estados europeus. 

A relação do partido com a minoria étnica sérvia é altamente problemática, apesar do partido ter mostrado disposição em cooperar com os partidos sérvios, seu discurso nacionalista muitas vezes expressa hostilidade e o partido não tem compromisso com a implementação da autonomia cultural para a minoria sérvia, em especial no que diz respeito á autonomia da Igreja Ortodoxa Sérvia; não reconhecem o direito de retorno dos refugiados sérvios para o país.. Porém cabe citar o argumento de Bilge Yabanci, que apesar de reconhecer essa relação problemática faz questão de frisar que o partido não aborda o problema étnico como extremistas de direita e não promove abertamente a homogenização da população. 

No caso do Movimento Autodeterminação observamos um populismo que se mobiliza pelos eixos do orgulho nacional, das demandas econômicas coletivas e da crítica do Estado (por ser corrupto e anti-democrático). Nesse sentido é um populismo mais inclinado à esquerda, distinto dos populismo com inclinação à direita que se mobilizam menos em prol de demandas econômicas e apelam mais para valores conservadores ou uma preocupação com a manutenção da ordem.


Nas eleições de 2019 saiu como o maior partido do parlamento com 26,27% dos votos; em 2021 melhorou seu desempenho conquistando 50,28% dos votos, resultado impressionante em um sistema parlamentarista. O primeiro governo do partido foi em 2020, mas só durou 121 dias; o governo formado em março de 2021 se mantém até então, prestes a completar três anos. No governo do Kosovo, com seu líder Albin Kurti como primeiro-ministro, o partido até então fez seguinte:

  • Iniciou uma campanha de “combate ao crime organizado e à corrupção”.
  • Criou uma agência para o confisco de bens “não-justificados”, voltada primariamente para confiscar bens que seriam produto de corrupção.
  • Ampliou os benefícios sociais para mães e crianças, na forma de pagamentos de transferência de renda. 
  • Aumentou consideravelmente o orçamento militar e comprou mísseis Javelin dos EUA.
  • Solicitou que os Estados Unidos transformem a base da OTAN em uma base permanente de tropas norte-americanas. 
  • Assumiu uma posição de linha dura em relação ao movimento sérvio no norte do Kosovo: conduziu as eleições municipais dos locais de maioria sérvia mesmo com o boicote sérvio (o que implicou em uma participação ínfima e a eleição de prefeitos de língua albanesa), mostrando disposição para passar por cima de manifestantes que ocuparam prédios dessas municipalidades. Para o secretário de estado dos EUA, Antony Blinken, e o presidente da França, Emmanuel Macron, o governo do Kosovo foi responsável pela escalada do conflito naquele momento. 
  • Apesar da dureza com o movimento sérvio no seu país e declarações hostis ao governo da Sérvia (que aumentaram o clima de guerra iminente), participou de negociações com Aleksandr Vucic (presidente da Sérvia) que levaram ao acordo de Ohrid e reduziram a tensão na região.
  • Criou um Fundo Soberano de Desenvolvimento, o que foi acompanhado pela interrupção do programa de privatização do país. O objetivo do Fundo é assumir negócios e bens que vinham sendo privatizados.

O movimento se beneficiou da crise do PDK, que tem atualmente seu principal líder, Ibrahim Thaçi, sob custódia em Haia para ser julgado por crimes contra a humanidade, além de vários outros dirigentes envolvidos em corrupção e crime organizado.  O Vetëvendosje é um exemplo de movimento populista capaz de se mobilizar com métodos do ativismo e com um nacionalismo que não depende de um estilo militarista, conservador ou religioso (apesar de abrigar ideias de preservação cultural). Na sua posição nacionalista hostil à Sérvia, entretanto, o partido buscou uma aliança mais forte com os Estados Unidos ao mesmo tempo que não hesitou em atuar de forma agressiva em 2023 apesar da posição tomada pelos governos norte-americano e francês.

Fontes

https://digitalcollections.sit.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2737&context=isp_collection

https://unipub.uni-graz.at/download/pdf/1617445

https://balkaninsight.com/mk/2015/01/24/%D1%81%D1%83%D0%B4%D0%B8%D1%80%D0%B8-%D0%BD%D0%B0-%D0%BF%D1%80%D0%BE%D1%82%D0%B5%D1%81%D1%82%D0%B8%D1%82%D0%B5-%D0%B2%D0%BE-%D0%BA%D0%BE%D1%81%D0%BE%D0%B2%D0%BE/

https://en.wikipedia.org/wiki/2019_Kosovan_parliamentary_election

https://www.reuters.com/article/us-kosovo-government/kosovo-approves-new-government-pm-vows-to-be-tough-negotiator-with-serbia-idUSKBN1ZX2HO/

https://kallxo.com/lajm/miratohet-ligji-per-byrone-e-konfiskimit-te-pasurise-se-pajustifikueshme/

https://edition.cnn.com/2023/05/31/europe/albin-kurti-kosovo-serbia-interview-intl/index.html

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