Estratégia fabiana é um termo clássico, cujo nome provém de um general romano, que se refere a evitar batalhas decisivas, protelando os encontros e cansando o inimigo através do atrito. Mais importante ainda, o termo se refere a estender a guerra no tempo evitando um compromisso muito grande no espaço: uma estratégia fabiana seria uma forma de se preservar e prolongar o conflito ao máximo.

PACKARD, Maj. Kyle D. Fabian Strategy for a Twenty-First Century Hannibal Reinvigorating U.S. Strategy in Iraq and Syria, Military Review set. – out. 2017, Estados Unidos: Army University Press, pp. 61-67.

O tema do texto é o conceito de estratégia fabiana como solução para os problemas militares e estratégicos dos Estados Unidos. O autor é o Major Kyle D. Packard, “estrategista do Exército” dos EUA e que atuou em “unidades convencionais e especiais” no Afeganistão e no Iraque.

Packard propõe uma estratégia fabiana em relação à “guerra contra o terrorismo”, tendo como referência o que ele chama de fracasso: a ascensão do Estado Islâmico e a falta de democracia liberal na região do Oriente Médio. Em seu esforço, ele revista a perspectiva estratégica do governo Bush – que ele considera muito ampla – e do governo Obama – que ele parece considerar muito estreita.

“A estratégia da administração Bush (…) uma guerra ilimitada perseguida com meios limitados.” (p. 62)

A crítica ao governo Bush feita por Packard, além de pensar nos recursos, aponta uma “cegueira política”, partindo de um pressuposto da guerra como política por outros meios ou da guerra como um instrumento para se alcançar objetivos políticos. São objetivos políticos que determinam uma estratégia.

Uma posição comum entre “especialistas ocidentais” é reproduzida por Packard, que aplica uma lógica de causa-e-efeito afirmando que os Estados Unidos não bancaram um governo “sunita-xiita”, o que ajudou a “cimentar um governo dominado por xiitas”, cujo o mau tratamento da população sunita “faria o Estado Islâmico possível”. É incrível como essa afirmação é feita por muitos como sólida sabedoria sociológica, por isso nós devemos assumir uma perspectiva crítica em relação a essa visão e interrogar em que medida ela não seria uma forma mais intelectualizada de culpar o governo iraquiano.

Se é uma questão de falar de simplicidade, não foi a própria invasão que permitiu o surgimento do Estado Islâmico? A destruição do Estado iraquiano desde os anos 1990 através de sanções até a invasão em 2003 não cumpre um papel relevante na cadeia causal? Uma coisa é dizer que o Estado Islâmico do descontentamento em setores da população em função do sectarismo, outra coisa é dizer que o “governo dominado por xiitas” fez o Estado Islâmico “possível”. Quem destruiu o Estado iraquiano, o exército, a polícia e os serviços não relacionados a segurança foi a invasão dos EUA, mas de alguma forma o estrategista ocidental fala como se a atuação dos Estados Unidos não estivesse entre as causas da tragédia iraquiana mas que se os EUA tivessem manipulado corretamente o governo das coisas no Iraque a situação teria sido muito melhor – não foi porque mais uma vez o discurso quer solapar a soberania do governo iraquiano.

Depois Packard concluí que a força só pode sustentar uma alternativa política ao “islamismo radical” por algum tempo, mas o Iraque já era uma “alternativa ao islamismo radical” antes de 2003. É realmente realista o pressuposto de Packard de que o que ele propõe é uma forma de combater o terrorismo, em geral, e vencer o Estado Islâmico, em particular?

O ponto de partida de Packard para muitos pode soar como uma ficção ideológica: os Estados Unidos fizeram suas intervenções em prol do objetivo ideal de “acabar com o terrorismo”, retirando do cálculo qualquer outro objetivo. Ele precisa desse ponto de partida para sustentar a visão de que as intervenções dos Estados Unidos foram, são e serão legítimas – sua proposta, apesar de ter se referido à importância das considerações políticas, não se aprofunda na discussão política dos objetivos e no fim sua única pretensão é ser mais eficiente.

Packard captura bem a transição do discurso antiterrorista de Bush para Barack Obama: “a guerra sem limites” vira uma guerra limitada e pontual, o discurso que justifica menor gasto com tropas, maior uso de drones e o recurso do terror seletivo chamado de “decapitação estratégica” (atacar as lideranças dos inimigos dos EUA). Entretanto, em relação ao ideal de “combater o terrorismo” o autor considera que isso também não funcionou, não servia efetivamente para combater os ISIS e não aproximou os EUA de outros Estados (que supostamente deveriam estar convidando os Estados Unidos para fazer “esforços conjuntos” contra os terroristas, mas na realidade vários estavam tentando se aproveitar de uma oportunidade histórica de se afastar dos norte-americanos).

Só então Packard faz sua proposição: uma estratégia fabiana. Não sobrecarregar o uso do poder enviando tropas em massa, nem acreditar em uma administração pontual da violência, mas uma perspectiva de longo prazo, que ao invés de buscar vitórias para si se concentre em negar vitórias ao outro.

Logo de início o autor diz que é preciso conter a guerra no território da Síria e do Iraque, buscando estendê-la no tempo com “o objetivo de jogar a vontade do Estado Islâmico contra as ambições regionais do Irã e da Rússia”. Packard escreveu isso em 2017 e a essa altura críticos já expunham a atuação dos Estados Unidos na região justamente em função dessa lógica: os EUA relegam uma região ao caos e a destruição, capaz de absorver terroristas internacionais e causar problemas para outras potências que estavam em um momento de ascensão. Moniz Bandeira, por exemplo, fez um argumento nesse sentido em sua obra.

Apesar de partir do objetivo ideal de “combater o terrorismo”, no decorrer do texto se revela pelo menos de forma implícita que a preocupação dele está mais ligada à projeção de poder dos Estados Unidos: busca por hegemonia, destruição de adversários geopolíticos (e não terroristas!) e, no máximo, intervencionismo liberal (mas de uma forma cínica). Se ele se concentrasse exclusivamente na questão do combate ao Estado Islâmico ou ao terrorismo na região, ele consideraria por algum momento se a atuação da Rússia, da Síria e do Irã naquele contexto não seria consistente com esse objetivo – mas ele sequer se interroga sobre isso, partindo do pressuposto que os três devem ser combatidos.

O que o militar propõe é uma guerra prolongada contra os inimigos dos EUA.

O que ele defende é que a força é importante, mas deve ser usada à moda fabiana, economizando na energia mas abusando do tempo, sem contar com o poder das intervenções de alta velocidade e precisão, nem desperdiçar força com intervenções massivas para ocupar o espaço buscando uma vitória decisiva.

Quando Packard fala, ele não fala apenas por si mesmo, mas representa uma tendência do pensamento estratégico nos EUA e uma alternativa na mão das elites dirigentes daquele país, tendo reflexos em outras questões fora do Oriente Médio. Se a Síria e o Iraque podem virar caldeirões de violência terrorista capazes de prejudicar os projetos de crescimento da Rússia, outro lugar não poderia servir o mesmo propósito? Diz ele:

“Ao invés de perseguir esses objetivos [políticos] ofensivamente, os Estados Unidos iriam mudar para uma mentalidade defensiva. O objetivo desta seria negar a qualquer lado uma vantagem decisiva, assim estendendo a guerra. Simultaneamente esgotando a Rússia e o Irã, qualquer compromisso político que emergir não terá opção a não ser se inclinar ao ocidente, deixando os Estados Unidos em uma posição de aproveitar ajudas de reconstrução para reformas liberais.”(p. 65)

E não é justamente o que estamos vendo agora com a Ucrânia? Não interessa aos Estados Unidos que a Rússia se afunde em um conflito que se arraste, independente dos custos que isso tenha para a Ucrânia e o potencial político e cultural que existe para acertar uma paz entre os dois países?

Da mesma forma, a Ucrânia oferece um grande exército que previne o envolvimento direto de tropas dos Estados Unidos, salvo grupos de operações especiais (também referidos por Packard). Outro aspecto do argumento do Packard em relação ao problema sírio se reflete na situação ucraniana, que é a construção da relação entre tempo e apoio da população norte-americana.

Packard acredita que para atingir os objetivos estratégicos é preciso de uma ação prolongada, porém não é possível manter a ação prolongada com muitas tropas, porque isso consome recursos e está sujeito às mudanças de humor no eleitorado dos Estados Unidos. A solução racional, econômica e estrategicamente acertada dos EUA então seria garantir que os conflitos continuassem sem um envolvimento direto muito grande por parte do país. Para isso até negociações infrutíferas podem ser boas, assim como rotas de intervenção aparentemente contraditórias, desde que o inimigo sangre – ou seja, nessa corrente de pensamento é bom que os Estados Unidos usem seu poder para ser um interlocutor não-confiável e inconsequente em buscar resoluções conjuntas, ele não pensa como a velha realpolitik que busca um status quo sustentável entre os grandes poderes (forma de pensamento supostamente representada pela Rússia agora), mas quer que inimigos sangres e que possíveis amigos sangrem também (pois não vão ter opção a não ser se inclinar para o ocidente em busca de créditos para reconstrução, estando sujeitos assim às reformas liberais).

Quem tem dinheiro, espera, os outros que sangrem e corram atrás de soluções que serão sabotadas pelo nosso “Fabius” norte-americano.

É a ordem do caos, a desordem mundial promovida por um hegemon decadente.

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