Protestos que abalam Paquistão nos últimos dias atingem os militares. A revolta se espalhou com a prisão do ex-primeiro-ministro do país, Imran Khan, no dia 9.

Liderança da oposição, Imran Khan foi preso de forma espetacular enquanto registrava sua biometria em um prédio judicial. Um grande número de paramilitares invadiu o local pelas janelas e arrastou o político para um carro blindado. As manifestações começaram na mesma noite.

As manifestações ocorrem nas grandes cidades e em alguns casos manifestantes atacaram diversas instalações militares, inclusive o Quartel-General do Exército e a residência do comandante dos corpos de exército de Lahore. Os atos são consideradas sem precedentes por seu caráter desafiador.

Manifestantes também se insurgiram contra prédios do governo.

Jornalista trabalhando para a CNN teria presenciado um manifestante ser morto durante uma investida contra um bloqueio militar. Até então 10 pessoas teriam perdido a vida e cerca de duas mil foram detidas.

No dia 10, o exército foi colocado nas ruas e emitiu uma declaração de que atuou de forma “refreada” até então mas que novos ataques receberão “retaliações severas”. A declaração também ecoou acusações do governo de que a oposição quer causar uma guerra civil, além de condenar slogans críticos aos militares.

Lideranças do partido de Imran Khan, Movimenta pela Justiça (Tehreek-e-Insaf), condenaram ataques contra instalações militares e clamaram por manifestações pacíficas contra o “sequestro” de seu líder. Apesar das declarações, dirigentes partidários foram presos acusados de organizar os atos de violência, incluindo o secretário-geral Asad Umar e Fawad Chaudhry, ambos ex-ministros de Estado. Outros também foram presos, incluindo um ex governador de Punjab, ou sofreram com missões de busca e apreensão.

O exército é muito influente e governou o país diretamente em muitos períodos desde a independência. No ano de 1979 deram um de seus golpes mais notórios, derrubando o governo do Partido Popular Paquistanês (“Islã a nossa fé, democracia nossa política, socialismo nossa economia – todo poder ao povo”), que teve seu líder Zulfikar Ali Bhutto preso e enforcado.

Imran Khan vem realizando muitas críticas ao papel do exército na política. Um dia antes da prisão, o exército havia emitido uma declaração condenando as alegações do político como “inaceitáveis”.

No dia 11 a Suprema Corte declarou que a prisão de Imran Khan foi ilegal e agora o ex-primeiro-ministro estaria sob sua proteção. A prisão havia sido executada Birô Federal de Responsabilidade (National Accountability Bureau), agência independente do ponto de vista institucional, mas que é às vezes retratada como instrumento dos militares. A agência é dirigida por militares da reserva e já teve sua administração criticada pela Suprema Corte do país. Atua no combate a casos de corrupção e crimes de colarinho branco.

O motivo desta prisão em específico seria a acusação da aquisição irregular de um terreno para a construção de uma universidade. Segundo Khan, seus adversários se esforçam para impedi-lo de disputar as eleições.

Os serviços de internet móvel do país estão suspensos desde o dia 9. A economia ligada ao sistema de aplicativos, como os de entrega de comida, sofre prejuízos. Plataformas de mídia social tiveram acesso bloqueado no país.

Existe a possibilidade do uso de poderes de emergência a nível local ou nacional.

Imran Khan, sua queda e seus processos – lawfare?

Jogador de críquete aposentado e de fama internacional, Imran Khan criou o partido Movimenta pela Justiça em 1996 e passou mais de uma década colecionando resultados eleitorais pífios (a princípio conquistando uma cadeira no parlamento nacional com dificuldades).

O partido se desenvolveu como uma plataforma de revolta populista, com elementos que passam por nacionalismo cívico e socialismo islâmico. Imran Khan se destacava como critico duro às intervenções dos Estados Unidos na região, com o partido servindo como núcleo organizador de manifestações contra ataques de drones no país. O partido também atacava violência policial e defendia extensão da liberdade individual.

Seu crescimento nas eleições de 2013 foi amparado por sua posição anti-americana. A vitória nas eleições de 2018 foi conquistada em um período de esfriamento das relações do establishment paquistanês com os Estados Unidos e de escândalos de corrupção envolvendo a família Shariff, que controla um dos grandes partidos do país (liberal-conservador e islâmico).

A chegada ao governo incluiu uma aproximação com setores do Islamismo e o recrutamento de elementos de esquerda que abandonaram o PPP (ligado á dinastia Bhutto). O governo ganhou uma marca “nacionalista” não só por seu discurso ideológico ou a tentativa afirmar uma identidade paquistanesa nos conflitos internos, mas por sua independência internacional. O Paquistão se afastou do ocidente e tentou se aproximar mais da China. Khan também buscou uma política independente de aproximação multivetorial com as potências muçulmanas que estavam em conflito: Irã, Turquia e Arábia Saudita. Houve também uma maior aproximação com a Federação Russa.

Khan também declarava ter os pobres como prioridade e ampliou sistemas de proteção social. O governo aplicou algumas políticas de austeridade, aumentou tarifas de importação e desvalorizou a moeda; em 2020 estabeleceu um regime especial de cooperação comercial com a China e aplicou algumas medidas de estímulo para a retomada pós pandemia em 2021.

Como governante, a atuação política Imram Khan teve um papel disruptivo em relação aos processos tradicionais de governo parlamentar. Depois sua postura desafiadora se estendeu para questões de nomeação e administração do exército.

O inicio do fim do seu governo foi uma disputa com o chefe das Forças Armadas a respeito da nomeação da chefia do serviço de inteligência. Simultaneamente, no final de 2021 a oposição sinalizava o interesse de realizar um voto de desconfiança para depor o governo.

Crescia um desconforto com os Estados Unidos em função da proximidade do governo paquistanês com a Rússia – no dia 7 de fevereiro de 2022 foi anunciada uma viagem para a Federação Russa. No dia 11 a oposição anuncia o voto de desconfiança. O governo declara que os EUA tentaram dissuadir a visita à Rússia, que foi realizada no dia 24, no mesmo dia em que se iniciou a operação militar russa no território ucraniano.

No dia 7 de março ocorreu um almoço do embaixador paquistanês nos EUA com funcionários do Departamento de Estado; a partir do dia 27 de março Imran Khan começa a denunciar que os Estados Unidos estavam ameaçando o país apontando seus interesses em relação ao voto de desconfiança, declarando que a transcrição do almoço em uma carta diplomática serviria de prova. O Tribunal Superior de Islamabad alertou que se Khan mostrasse a carta “haveria consequências” por revelação de um documento confidencial; houve uma tentativa de expedição de um mandato de segurança contra o Primeiro-Ministro, que foi negado pela Suprema Corte do país com mais avisos ao governante.

Imran Khan chegou a mostrar a suposta carta (ou uma cópia dela) em um pronunciamento em rede nacional, sem expor o conteúdo. Uma declaração citada foi a de que os Estados Unidos avisavam Khan de que haveriam consequências caso ele sobrevivesse ao voto de desconfiança. Também foi revelado que a princípio militares tentaram esconder a carta do PM e do ministro de relações exteriores.

Khan perdeu a votação de manutenção do governo na noite do dia 9 de abril de 2022. No dia 10 de maio, o novo PM Shehbaz Sharif fez um pronunciamento perante o parlamento dizendo que a carta existia de fato e era “ameaçadora” porém, diferente do acusava o líder deposto, não implicaria em nenhuma conspiração.

A derrota de Khan foi sucedida por manifestações. Desde sua queda, Imran Khan vem liderando uma campanha contra o novo primeiro-ministro Shahbaz Sharif, acusando de aliança com os militares e exigindo novas eleições. O líder político também declara que foi vítima de uma operação de “mudança de regime” pelos Estados Unidos em conjunto com os militares.

Khan também passou a receber uma torrente de processos na justiça, a maioria acusando-o de corrupção. As acusações vão desde a venda de presentes de Estado até envolvimento com terrorismo – foram mais de 100 processos iniciados desde que ele deixou o governo (vários já foram retiradas, como a de terrorismo, mas servem como assédio judicial).

É notável que a atividade da agência anti-corrupção (a mesma que prendeu Khan) se expandiu muito durante o governo de Imran Khan e passou a mirar mais políticos. O governo Khan tratava as operações anti-corrupção como uma espécie de opção ideológica para a economia. Ainda hoje Khan faz campanha enfatizando medidas de combater à lavagem de dinheiro e mais impostos para os ricos.

Azeem Ibrahim descreveu o poder econômico e político do exército paquistanês, argumentando que Imran Khan teria se convertido em uma “ameaça”. Khan estaria conquistando uma independência tática dos militares por ter um “partido nacional, não regional”, que tem uma popularidade orgânica e variada, que a popularidade de Imran Khan por si só ameaçaria os militares. Ao denunciar o poder do exército, Khan teria quebrado as expectativas de um pacto não-decretado.

Para o jornalista Abbas Nassir, porém, Imran Khan não seria páreo para a oposição militar contra ele.

No dia 3 de novembro de 2022, um atirador tentou assassinar Imran Khan durante um discurso em Wazirabad. Khan sofreu ferimentos na perna, outras oito pessoas ficaram feridas e uma faleceu. O político acusou um general de estar envolvido na organização do atentado.

Em março de 2023 ocorreu uma tentativa de prisão contra Imran Khan por não comparecimento a uma corte. Sua casa estava cercada e ocupada por apoiadores que defenderam a residência do líder político e impediram a prisão com resistência civil (não foram usadas armas de fogo pelos apoiadores do político, somente pedras foram arremessadas).

Acrescentando ao clima de instabilidade, em março deste ano o governo paquistanês enviou uma lei para o parlamento propondo a redução de poderes da Suprema Corte, que é acusada de “ativismo judicial”. É notável, no entanto, que o estopim para o conflito do atual governo com a Suprema Corte está na interpretação de uma exigência constitucional de realização de eleições. Antes de ser derrubada pelo voto de desconfiança, Imram Khan decretou a dissolução do parlamento, o que exigiria novas eleições em 90 dias. A Suprema Corte decidiu que a dissolução não servia para anular o voto de desconfiança, mas as eleições deveriam ser realizadas no prazo. As eleições foram postergadas pelo governo até então com a alegação de impedimentos financeiros e de segurança.

Crise econômica e catástrofe climática

O Paquistão vem passando por problemas econômicos. O governo negocia com o FMI para a retomada de um projeto de empréstimos internacionais que foi interrompido em novembro do ano passado. O FMI exige a liberalização do controle cambial e aumento de impostos. A inflação é um problema crescente.

O país também foi afetado por enchentes catastróficas no último verão, que destruíram quase dois milhões de hectares de plantações, exterminaram mais de 800 mil animais de criação, causaram danos econômicos na ordem de pelo menos 40 bilhões de dólares e mataram pelo menos 1739 pessoas; 33 milhões de pessoas no Paquistão tiveram que sair de suas casas. As manchetes falavam de “um terço do país coberto por água” e um tema comum foi a baixa contribuição relativa do Paquistão nas emissões globais de carbono.

O Paquistão é o quinto país mais populoso do mundo (230 milhões de pessoas) e possuí uma das demografias mais jovens (idade mediana: 22 / dois terços da população com menos de 30 anos).

Fontes

https://apnews.com/article/pakistan-imran-khan-arrested-charges-55a53535b91051da679c9b57b0bc9a54 Pakistan’s ex-PM Imran Khan arrested, sparking violence, 10/05/23 (nota: há um erro na redação dessa notícia, o sexto parágrafo dificilmente faz sentido, pois Fawad Chaudhry é um homem e sua posição é favorável à Imran Khan, suas declarações foram no sentido de afastar o partido dos atos violentos)

https://www.siasat.com/pti-supporters-vandalise-pak-army-properties-after-imrans-arrest-2585645/ PTI supporters vandalise Pak Army properties after Imran’s arrest, 10/05/23

https://www.wionews.com/south-asia/pakistan-crisis-protesters-loot-mutton-korma-and-peacock-from-lahore-corps-commanders-house-watch-590944 Pakistan crisis: Protesters ‘loot’ mutton korma and peacock from Lahore Corps Commander’s house – Watch, 10/05/23

https://www.cbsnews.com/news/pakistan-imran-khan-arrest-protests-deaths-army-deployed/ Pakistan riots over Imran Khan’s arrest continue as army deployed, 8 people killed in clashes, 10/05/23

https://www.aninews.in/news/world/asia/mayhem-unleashed-on-pakistani-streets-protestors-throng-army-hq-residence-of-corps-commander20230509213003/ Mayhem unleashed on Pakistani streets; protestors throng Army HQ, residence of Corps Commander, 09/05/23

https://edition.cnn.com/2023/05/09/asia/imran-khan-arrest-intl/index.html Former Pakistan Prime Minister Imran Khan arrested by paramilitary police, 09/05/2

https://www.aljazeera.com/news/2023/5/10/imran-khan-arrest-army-called-in-as-pakistan-protests-continue Imran Khan arrest: Army called in as Pakistan protests continue, 10/05/23

https://tribune.com.pk/story/2416070/pti-leader-fawad-chaudhry-arrested-after-evading-police-for-12-hours PTI leader Fawad Chaudhry arrested after evading police for 12 hours, 11/05/23

https://www.bbc.com/news/world-asia-65561807 Imran Khan: Pakistan’s Supreme Court rules arrest was illegal, 11/05/23


https://www.aljazeera.com/news/2023/4/5/imran-khan-qa-pakistan-civil-military-imbalance-has-to-change Imran Khan Q&A: ‘Pakistan civil-military imbalance has to change’, 05/04/23

https://en.wikipedia.org/wiki/National_Accountability_Bureau

https://www.aljazeera.com/news/2023/5/11/pakistan-internet-shutdown ‘Ruined my livelihood’: Pakistan internet shutdown hits millions, 11/05/23

https://www.theguardian.com/world/2022/mar/31/imran-khan-address-pakistan-faces-no-confidence-vote Imran Khan claims US threatened him and wants him ousted as Pakistan PM, 31/03/22

https://www.aljazeera.com/news/2023/5/9/timeline-imran-khan-from-ouster-to-arrest-in-pakistan?traffic_source=KeepReading Timeline: Imran Khan, from ouster to arrest in Pakistan, 09/05/23

https://foreignpolicy.com/2022/11/04/pakistan-military-imran-khan-assassination/ Pakistan’s Military Is Afraid of Imran Khan, 04/11/22

https://www.nytimes.com/2022/11/24/opinion/pakistan-imran-khan-assassination-attempt.html Why Imran Khan Can’t Outplay Pakistan’s Military, 24/11/22

https://www.aljazeera.com/opinions/2023/5/11/imran-khans-arrest-has-exploded-pakistans-reservoir-of-rage? Imran Khan’s arrest has exploded Pakistan’s reservoir of rage, 11/05/23

https://www.dawn.com/news/1682635 Revealing ‘threat letter’ will have consequences, IHC cautions PM, 31/03/23

https://www.aljazeera.com/news/2023/3/29/why-is-pakistan-government-trying-to-clip-supreme-courts-powers?traffic_source=KeepReading Why is Pakistan government trying to clip Supreme Court’s powers?, 29/03/23

https://en.wikipedia.org/wiki/2022_Pakistan_floods

https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2022/10/28/pakistan-flood-damages-and-economic-losses-over-usd-30-billion-and-reconstruction-needs-over-usd-16-billion-new-assessme Pakistan: Flood Damages and Economic Losses Over USD 30 billion and Reconstruction Needs Over USD 16 billion – New Assessment, 28/10/22

https://www.bbc.com/news/world-europe-62712301 Pakistan floods: One third of country is under water – minister, 30/08/22

https://www.nytimes.com/2022/09/03/opinion/environment/floods-in-pakistan-climate-change.html What Is Owed to Pakistan, Now One-Third Underwater, 03/09/22

https://www.rescue.org/uk/country/pakistan informações do Comitê Internacional de Resgate

https://time.com/6279063/pakistans-economic-investment-potential/ The Contrarian Case for Pakistan’s Upside, 11/05/23

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