A guerra entre Rússia e Ucrânia se estende para o campo da religião. A Igreja Ortodoxa ligada ao Patriarcado de Moscou sofre pressão de agências do Estado e de manifestações nacionalistas. A igreja é acusada de ser usada por interesses do estado russo.

O tradicional complexo religioso de Pechersk-Lavra, em Kiev, está no centro da crise. O local serve como sede da Igreja Ortodoxa Ucraniana e o governo emitiu uma ordem de despejo para essa instituição, que abriga no local centenas de padres, monges e estudantes, além de servir como residência para o líder da igreja, o Metropolita Onúfrio. A ordem deveria ser cumprida totalmente no dia 29 de março, mas religiosos resistem no local.

O mosteiro é considerado um local sagrado, repleto de artefatos, com infraestrutura moderna junto de construções que iniciaram no século XI e se misturam com as cavernas do Monte Berestov, por isso o local é chamado de “Monastério das Cavernas”. A UNESCO considera o local patrimônio da Humanidade.

A tensão se desenvolve na semana que precede a Páscoa ortodoxa.

Apesar do governo ter alegado motivos administrativos, o processo está ocorrendo em meio a uma campanha aberta dirigida contra a Igreja Ortodoxa Ucraniana, que é acusada de colaborar com a Rússia.

No dia primeiro de abril, o abade do mosteiro, o Metropolita Pavel, foi colocado em 60 dias de prisão domiciliar por uma corte de Kiev, acusado pelo serviço de segurança estatal (SBU) de organizar propaganda favorável aos russos. No dia 7, o Ukrainska Pravda divulgou passaportes russos de 20 hierarcas da Igreja Ortodoxa Ucraniana, inclusive do Metropolita Onúfrio. Dupla nacionalidade é ilegal na Ucrânia.

Onúfrio respondeu que recebeu cidadania por ter estudado teologia e ter sido monge em Moscou no anos 70.

Metropolita Onófrio com fiíes em vigília no Pechersk-Lavra
Metropolita Onúfrio com fiéis em vigília no Pechersk-Lavra



No dia 2 de abril, emergiu um vídeo de um soldado sendo agredido em uma igreja ortodoxa de Khemelnitsky, que depois foi tomada por manifestantes apoiados pelo governo local. O prefeito é proveniente do grupo ultra-nacionalista Svoboda e possuí o maior número de vereadores no conselho municipal.

O Patriarca da Antióquia, João X, enviou uma mensagem de apoio para Onúfrio, dizendo que ele e sua “sagrada Igreja suportam essa perseguição por Cristo”.

No final de 2022, após um discurso do presidente Volodymyr Zelensky sobre a busca por “soberania espiritual”, foram realizadas mais de 40 operações repressivas contra a igreja e 60 processos criminais foram iniciados contra clérigos. Naquele momento foi realizada uma ação de busca e apreensão no Pechersk-Lavra, na qual foi confiscada uma grande quantia de dinheiro.

A justificativa para a invasão em novembro de 2022 foi um vídeo em que pessoas cantavam uma música que fala sobre “o despertar da Mãe Rússia”, o que causou escândalo na mídia ucraniana. A música, porém, é um poema de 2004 dedicado à Nossa Senhora e ao renascimento da religião nas terras de “Rus” (termo para velhos territórios de Kiev, Novgorod e Moscou). Membros da igreja também questionaram a legitimidade do vídeo por este ter seus metadados editados (a ocasião poderia ter sido gravada antes da operação russa nas terras ucranianas, por exemplo).

O segundo maior complexo ortodoxo do país, Pochaev-Lavra, também passa por uma situação conflitiva. No ano 2000, a possessão foi passada para os monges da Igreja Ortodoxa Ucraniana, mas quando criou-se um parque histórico na região foi estabelecida uma concessão até 2052. Desde 2014, o conselho municipal de Ternopil vem tentando reassumir o controle do complexo. Em novembro de 2022 foram realizadas incursões militares no local. No início de 2023, a Igreja Uniata declarou seu interesse em utilizar o local e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia pediu para assumir o controle do local. O Svoboda é o maior partido do conselho municipal de Ternopil.

Em dezembro de 2022, Zelensky também falou da preparação de uma lei que baniria as atividades da Igreja Ortodoxa Ucraniana. Foi realizada uma reunião do Conselho de Segurança Nacional exclusivamente para orquestrar esta campanha.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana não pode ser confundida com a nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que se afirma como independente da Rússia e surgiu da unificação do “Patriarcado de Kiev” de Filaret com a Igreja Ortodoxa Ucraniana Autocéfala, sob a jurisdição eclesiástica do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla e o primado do Metropolita Epifanius I. Por isso, a Igreja Ortodoxa Ucraniana com frequência é referida com um acréscimo entre parêntesis indicando “Patriarcado de Moscou”.

O estado ucraniano vem desde 2019 tentando transferir igrejas e mosteiros da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscou) para sua concorrente nacional “da Ucrânia”. Na disputa pelo Pechersk-Lavra, no início do ano o governo cedeu para a igreja nacional instalações para a realização de rituais natalinos, além de ter permitido rituais da Igreja Uniata, uma instituição fiel ao catolicismo romano mas que segue o rito oriental, seguida por cerca de 10% dos ucranianos, a maioria do oeste do país. A Igreja Uniata é historicamente associada à quadros do nacionalismo ucraniano na região da Galícia.

O líder da Igreja Ortodoxa da Ucrânia disse que vai “limpar” o monastério das cavernas da ilusão do “Mundo Russo”.

Em uma ofensiva política para conquistar credenciais de nacionalista comprometido, Poroshenko buscou “resolver a questão religiosa” unificando a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, aumentando a pressão contra a comunhão ortodoxa com Moscou e conquistando o reconhecimento do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla. O reconhecimento de Constantinopla em detrimento da reivindicação de jurisdição eclesiástica de Moscou causou um grande racha internacional no cristianismo ortodoxo. O processo também foi contencioso pois reivindicações de autocefalia devem ser feitas por uma igreja canônica, no caso a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, o que na prática não ocorreu (o que se usou foi a legitimidade da jurisdição ucraniana enquanto tal).

Durante o conflito, a Igreja Ortodoxa Ucraniana também tentou afirmar independência administrativa em relação à Moscou sem perder sua comunhão com a igreja russa (comunhão que tem, pelo menos, importância espiritual do ponto de vista de teologia eclesiológica), adotando resoluções nesse sentido no ano de 2017. No mesmo período, o SBU publicou documentos da antiga da KGB indicando relações do serviço de segurança estatal soviético com a hierarquia da igreja no passado.

Em 2018, o parlamento ucraniano passou uma lei sobre liberdade de religião que “renomeava” a igreja para “Igreja Ortodoxa Russa”, o que foi repelido depois na suprema corte. A lei também proibia a igreja de prestar serviços religiosos para as Forças Armadas da Ucrânia. No mesmo período – durante o qual se estabeleceu a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – uma série de ações repressivas foram tomadas contra a infraestrutura da igreja ligada ao Patriarcado de Moscou.

Com o início da operação militar russa em 2022, a Igreja Ortodoxa Ucraniana tentou marcar distância condenando a invasão e reafirmando sua independência administrativa. Ao mesmo tempo, o Patriarca de Moscou, Kirill, reconhece a igreja ucraniana como uma “auto-governada” sob a jurisdição de Moscou e devolveu o governo da igreja na Crimeia para a Igreja Ortodoxa Ucraniana.

Alguns clérigos da Igreja Ortodoxa Ucraniana não só seguiram atividades religiosas como cumpriram algumas funções que foram consideradas por alguns como colaboração, incluindo a participação em eventos celebrando a anexação, a benção de novas autoridades ou das próprias tropas russas. O discurso da igreja em defesa de negociações de paz e chamando a guerra de “fraticida” também é tido como ideologicamente ofensivo para amplos setores do nacionalismo ucraniano.

De fato, a Igreja Ortodoxa Ucraniana possuí um histórico de inclinação cultural pro russa, sendo um espaço de onde saíram muitos militantes favoráveis ao alinhamento ou a reunificação com a Rússia. Sua estrutura serviu para a distribuição de publicações ligadas a esse posicionamento e de produções editoriais da igreja russa.

Atualmente, fiéis e clérigos vem se colocando como cidadãos leais à Ucrânia em suas manifestações, usando as cores nacionais ucranianas enquanto pedem respeito ao que seria sua liberdade de culto.

A maioria dos ucranianos se identifica com o cristianismo ortodoxo. Nas pesquisas, respostas variadas aparecem nos últimos dez anos. Os editores da Wikipedia em inglês compilaram alguns índices: nas pesquisas do Centro Razumkov, em 2014 28,1% dos ortodoxos se declararam “apenas ortodoxos”, contra 22,4% do “Patriarcado de Kiev” e 17,4% do “Patriarcado de Moscou”; em 2018 (4 anos de guerra civil), 23,4% “apenas ortodoxos”, 28,7% do “Patriarcado de Kiev” e 12,9% do “Patriarcado de Moscou”. Em pesquisas realizadas desde 2020, por outros institutos, há um grande crescimento da “Igreja Ortodoxa da Ucrânia” e uma queda do “Patriarcado de Moscou”.

É preciso considerar algumas ressalvas, pois a auto-declaração não necessariamente reflete o número de fiéis ativos, a começar pela problemática dos nomes. O Patriarcado de Kiev liderado pelo Patriarca Filaret se juntou à “Igreja Ortodoxa da Ucrânia” em 2018 mas, por divergências de governo, se separou novamente em 2019 mantendo a existência do chamado “Patriarcado de Kiev”. No entanto, os números que antes apareciam para o “Patriarcado de Kiev” agora são atribuídos a “Igreja Ortodoxa da Ucrânia”. Isso ocorre por existir uma parcela da população ucraniana preocupada em se declarar adepta de uma igreja nacional ucraniana independente de questões mais específicas de governança. A Igreja Autocéfala, historicamente mais ligada a militância nacionalista, dificilmente ultrapassou 2% da população ucraniana apesar de sua influência no exterior.

É também importante ressaltar que só uma minoria dos auto-declarados ortodoxos frequentam semanalmente a igreja (segundo Ksenia Luchenko, 12% da população) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscou) controla a maior parte das igrejas e mosteiros do país. Os fiéis ortodoxos dessa denominação podem ser mais ativos ou é possível que mesmo pessoas que se declarem adeptos de uma “Igreja nacional” em pesquisas frequentem igrejas ligadas ao sistema da Igreja Ortodoxa Ucraniana. No mundo ortodoxo, o número de padres e monges ativos também é tratado tão ou mais importante do que o número de fiéis leigos, por representar um tipo de potência espiritual além de força mundana.

Fontes

https://www.bbc.com/news/world-europe-65117269 Ukraine war: Orthodox clerics say they will not leave Kyiv monastery, 29/03/2023

https://www.pbs.org/newshour/world/orthodox-leader-in-kyiv-ordered-under-house-arrest-by-ukrainian-court#:~:text=KYIV%2C%20Ukraine%20(AP)%20%E2%80%94,over%20a%20famed%20Orthodox%20monastery. Orthodox leader in Kyiv ordered under house arrest by Ukrainian court, 01/04/2023

https://euromaidanpress.com/2023/04/08/moscow-backed-ukrainian-orthodox-church-leader-20-other-hierarchs-are-russian-citizens-media-claims-church-denies/ Moscow-backed Ukrainian Orthodox Church leader, 20 other hierarchs are Russian citizens, media claims; church denies, 08/04/2023

https://orthochristian.com/149485.html KIEV CAVES ABBOT COMMENTS ON SITUATION REGARDING INVESTIGATION INTO SUPPOSED “PRAYER FOR RUSSIA”, 16/11/2022

https://www.dsnews.ua/world/hram-upc-mp-v-hmelnickom-gde-izbili-voennogo-pereydet-v-pcu-02042023-477102?ref=kyivindependent.com 02/03/2023

https://orthodoxtimes.com/message-of-the-patriarch-of-antioch-to-metropolitan-onufriy-on-lavra-your-church-is-under-persecution/ Message of the Patriarch of Antioch to Metropolitan Onufriy on Lavra: Your Church is under persecution, 27/03/2023

https://www.pravda.com.ua/news/2023/03/28/7395446/ monastério de Pochaev, 28/03/2023

https://www.ukrainianworldcongress.org/ukraines-nsdc-initiates-a-ban-on-religious-organizations-associated-with-russia/ UKRAINE’S NSDC INITIATES A BAN ON RELIGIOUS ORGANIZATIONS ASSOCIATED WITH RUSSIA, 02/12/2022

https://www.reuters.com/world/europe/ukraine-orders-probe-into-russian-linked-church-says-zelenskiy-2022-12-01/ Ukraine to prepare law banning churches ‘affiliated’ with Russia, 02/12/2023

https://www.yalejournal.org/publications/the-gospel-according-to-poroshenko-politics-religion-and-the-new-church-of-ukraine The Gospel According to Poroshenko: Politics, Religion, and the New Church of Ukraine, 04/04/2019

https://www.unian.info/politics/10385250-ukraine-s-parliament-passes-bill-on-renaming-uoc-mp.html Ukraine’s parliament passes bill on renaming UOC-MP, 20/12/2018

https://www.aljazeera.com/news/2018/12/15/ukraine-set-to-establish-new-church-secure-split-from-russia/ Ukraine set to establish new church, secure split from Russia, 15/12/2018

https://orthodoxtimes.com/metropolitan-of-kyiv-our-goal-is-to-cleanse-lavra-of-the-illusion-of-russkiy-mir-russian-world/ Metropolitan of Kyiv: Our goal is to cleanse Lavra of the illusion of “Russkiy Mir – Russian World”, 18/03/2023

https://www.reuters.com/article/us-ukraine-church/ukraines-security-service-raids-home-of-russian-backed-monastery-head-idUSKCN1NZ1I1 Ukraine’s security service raids home of Russian-backed monastery head, 30/11/2018

https://www.france24.com/en/20181203-ukraine-raids-orthodox-churches-russia-ties-putin-poroshenko-azov-crimea Ukraine raids Orthodox churches with Russia ties, 03/12/2018

https://carnegieendowment.org/politika/88811 Can the Ukrainian Orthodox Church Survive the War With Russia?, 17/01/2023

https://www.eurozine.com/the-changing-dilemmas-of-ukrainian-orthodoxy/ The changing dilemmas of Ukrainian Orthodoxy, 08/11/2019

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