As tendências radicais dos estudantes socialistas e da militância anti-imperialista alemã dos anos 70 sofreram uma contraposição tardia pela chamada tendência de esquerda anti-alemã, ou a esquerda anti-nacional, notória por ser contra todos os estado nacionais, menos Israel.

Depois da destruição das guerrilhas pela repressão concluída nos anos 80 e a crise devastadora do comunismo internacional em 1991, setores que tinham dificuldade de disputar as linhas dominantes do anti-imperialismo e do comunismo até então foram para o ataque: autonomistas, alguns trotskistas e comunistas dissidentes.

O elemento central dessa tendência não está na oposição à existência do estado-nação alemão, mas a defesa militante do Estado de Israel. Desde os anos 1990 até agora a principal atividade militante dessa fração, fora o publicismo, é defender Israel nas ruas. A posição “anti anti-sionista” evoluiu para a posição “anti anti-americana”.

De forma aparentemente contraditória com a postura provocativa de seu nascimento, a recusa do Estado alemão, os anti-alemães chegaram hoje na defesa da reafirmação de uma política militar da Alemanha em sua posição pro ucraniana; ou quando realizam malabarismos para criticar o feminismo da atual ministra das relações exteriores por ele atrapalhar uma política mais agressiva (enquanto outros setores da esquerda alemã criticam o fato dela imprimir um selo feminista em uma política imperialista de toda forma).

Isso não é fruto de uma ortodoxia descontente com “inconsistências” do anti-sionismo ou do anti-imperialismo, mas resultado do programa dessa fração. O genocídio de judeus na Segunda Guerra seria a referência desse programa (podemos ter como referência o recente editorial da edição 91 do Bahamas). A justificativa central de sua ação política é de que a civilização traz consigo a possibilidade de Auschwitz (lembre do “Dialética do Esclarecimento”), o que não é uma reflexão exclusiva (é comum na Europa do pós guerra), mas eles consideram que tudo que fazem é consequente em relação a isso.

A própria crítica que fazem do capitalismo depende dessa posição: a produção não pode ser controlada, ela é irracional, mas ainda assim existem tentativas de “controlar a crise do capital pelos meios do capital” que vão levar a projeção da irracionalidade em elementos “sem raíz” da comunidade e os judeus seriam as vítimas prioritárias; Israel seria uma resolução desse problema e a oposição palestina uma continuidade do mesmo problema (como se o evento de “judeus assassinados em Israel” por ações palestinas estivesse ligado à Segunda Guerra Mundial).

Não que esse tipo de reflexão seja complementamente equivocada- evitar Auschwitz é uma coisa boa, mas até o extremista judeu Meir Kahane se mobilizou com o slogan “Never Again!”.

Além de apoiar Israel, a tarefa política dos anti-alemães que justificaria seu caráter anti-nacional é a de evitar qualquer “Generalidade proclamada” ou concepções de comunidade, como é repetido em 2023 no editorial do Bahamas mas é um tema comum emprestado por outras tentativas de crítica “anti-nacional” na esquerda em outras partes do mundo. Nesses sentidos compartilhados estaria o risco do genocídio antissemita e na ausência deles a possibilidade de “auto-reflexão” que permite a resistência.

Por essa lógica, os anti-alemães em 2022 defendem que só os ucranianos e os russos oprimidos por Putin entendem o valor da “vida normal e livre” do ocidente; em 2023, defendem o Estado constitucional alemão por ele permitir essa “auto-reflexão”, o que seria qualitativamente distinto do modelo chinês – e segundo os editores do Bahamas, qualquer transformação revolucionária está fora do horizonte atual e a mudança radical seria “o triunfo do estado total do modelo chinês”.

Um impressionante desenvolvimento dialético: de “é melhor sair da Alemanha” para “é realmente melhor ficar por aqui”.

Não só recusam a política comunista revolucionária e seus derivados, como recusam a participação na política social-democrática – o título ostensivo e jocoso da publicação “Bahamas” (“é melhor ir para as Bahamas e abandonar a Alemanha”) mostra uma indisposição pessimista com a maior parte das tarefas políticas, restando somente a resistência nos termos colocados acima.

Por esse caminho, eles reforçam sua oposição aos “comunistas disciplinados”, coletivistas ou outros republicanos, nos termos de uma política individualista “libertadora”, algo marcusiana, centrada no combate da repressão psicológica como parte da guerra contra o fantasma dos anos 1940 – postura que se repete na sua oposição contra “identitários” e sobretudo contra os muçulmanos.

Efetivamente, cavaram uma trincheira na defesa do liberalismo, mas tentam romper com o que consideram as expectativas da consciência liberal histórica, com seu humanismo e constitucionalismo ingênuos – a diferença dos anti-alemães seria uma diferença de estilo, atitude, a consciência do pesadelo onipresente.

O estilo libertário aparece como roupagem de conservadores alarmados com o sempre iminente colapso civilizacional.

Nessa corrente, há uma tentativa de reformular a crítica radical do capitalismo se concentrando na questão da crise endêmica levar ao massacre e ao triunfo do fascismo, o que justifica uma estratégia autonomista (“antifa”) que vive em função de resistir a essa possibilidade, ao mesmo tempo que o grosso das propostas alternativas (reformistas ou revolucionárias) são criticadas como tentativas “controlar a crise do capital pelos meios do capital”, o que já seria um perigo por si só. É fácil lembrar também do grupo da revista Krisis em geral e de Robert Kurz em particular, da turma da “crítica do valor”.

É importante salientar porém que a tendência mais dura dos anti-alemães, representada pela Bahamas, postula essa ideia de risco da crise enfatizando o massacre dos judeus (“Auschwitz não é Dachau”), assim como militam ativamente para delimitar que “o Holocausto não pode ser generalizado como genocídio”, sendo efetivamente hostis contra a maioria dos discursos políticos que se mobilizam a partir da categoria genocídio (a começar pela Nakba). Assim é possível se manter firme na defesa de Israel, sem pensar em uma “virada fascista” naquele país.

O grupo da Bahamas apoiou a guerra dos Estados Unidos contra o Afeganistão e o Iraque mobilizando esses ideologemas, o que foi duramente criticado por Kurz. Não obstante essa ruptura, em 2003 Kurz raciocinou em “A Guerra do Ordenamento Mundial” com base nessa ideia do antissemitismo como ideologia central da destruição no capitalismo, ou a exteriorização ideológica “das contradições internas do capitalismo”, o que não seria bem compreendido pela esquerda (pelo contrário, seria resistido).

Kurz salienta que Israel pode até carregar as características negativas que ele atribui a todo Estado, mas que “paradoxalmente” o nacionalismo judeu é diferente de outros nacionalismos e que possuí um “momento decisivo de justicação”, que segundo ele falta a todos estados revolucionários nacionais do Terceiro Mundo, uma singularidade de ser “produto involuntário dos nazis e da lógica de aniquilação da subjetividade capitalista na sua extrema agudização”, que mesmo sendo “expressão da forma do sujeito capitalista (…) representa a necessidade e a legítima defesa extremas contra essa mesma forma de sujeito”. A dependência em relação imperialismo ocidental é reconhecida por Kurz, mas ele inverte as conclusões da esquerda anti-imperialista: essa dependência seria uma “vergonha”, como se Israel devesse ser protegido por princípio e não por interesse, e que no fim o país é “vítima” das maquinações ocidentais.

Em 2009, Kurz escreveu “A guerra contra os judeus”, onde descreve a crise global do capitalismo como raiz de um suposto “massacre de civis israelenses” pelos palestinos; de novo, Israel seria um país injustamente isolado e abandonado pelas maquinações imperialistas, enquanto Hugo Chávez em “aliança com o islamismo” representava a ratificação “decadência ideológica” do mundo em geral e da esquerda anti-imperialista em particular, o que seria mais uma demonstração do papel da esquerda na “viragem neo-estatista” da crise global; por fim, defende a “aniquilação” do Hezbollah (libanês) e do Hamas como tarefas políticas imediatas, não vendo nesses grupos expressões de guerras nacionais contra Israel mas manifestações de uma guerra mais ampla contra os judeus.

Para Kurz em 2003 – o que é repetido por kurzianos 20 anos depois – até falar em “trabalho produtivo” seria um “ponto de contato implícito” da esquerda radical com o antissemitismo. De certa forma, é como se a vontade de engajamento de reformistas e revolucionários com questões econômicas e com o exercício político não seria só uma “crítica redutora do capitalismo”, mas uma postura que traz dentro de si a possibilidade de repetição do Holocausto.

Com esses exemplos, podemos entender a centralidade de Israel para essa tendência da “crítica anti-nacional”. Temos aqui uma totalidade programática: é errado se opor à Israel pois Israel seria auto-defesa judaica e reação justa ao momento central da história do capitalismo, mas além disso o movimento de solidariedade com a Palestina evoca as ilusões desenvolvimentistas e o potencial do renascimento de movimentos nacionalistas por imitação. Como no exemplo do chavismo, o movimento de solidariedade com a Palestina foi uma espécie de capa ideológica de todas as tendências estatistas a nível internacional.

Tendo a posição anti-chinesa e anti-russa do Bahamas em mente, podemos ser mais duros na crítica e ver por trás disso somente a ideologia de defesa da civilização ocidental. Poderia inclusive reescrever os parágrafos anteriores com uma citação do próprio Kurz contra o grupo do Bahamas em 2001:

“Ao mesmo tempo que cultivaram uma ortodoxia idólatra de Adorno, os adeptos desvirtuaram o conceito de uma suposta ‘anulação negativa do capitalismo’ aplicando esta fórmula, ao contrário de Horkheimer e Adorno, exclusivamente à Alemanha nazi. Assim tornou-se possível que reivindicassem para si a questão da emancipação da relação do valor de um modo abstracto e perfeitamente indefinido para, na realidade, a porem de lado e se orientarem para uma luta eternamente repetida, lado a lado com o capitalismo (ocidental) e contra o capitalismo (alemão) supostamente ‘negativamente anulado’.”

Em outras palavras, assumiram a defesa do programa “iluminista” do ocidente capitalista contra o potencial onipresente do nazismo, potencial que Kurz não nega necessariamente, mas ele ainda chama os anti-alemães que critica de “variante de extrema Esquerda da ideologia burguesa”; Kurz só se considera mais consequente em relação a esses riscos, enquanto aqueles que caminharam para a apologia aberta da OTAN estariam na prática colocando o nazismo não como risco presente no capitalismo liberal mas como inimigo exterior.

Para esses críticos, desde os guerrilheiros alemães dos anos 70 até exposições artísticas contemporâneas em solidariedade com a Palestina, dentre outras ações diversas, estariam caminhando na direção do Holocausto. A postura em questão está além de usar o Holocausto como espelho para refletir criticamente os fenômenos, pois ela o posiciona como um devir. A partir disso é possível argumentar que os guerrilheiros alemães ou os diversos adversários escolhidos por essa tendência não estariam apenas cometendo erros.

Para a fração anti-alemã existe um eixo histórico universal que está – ironicamente? – no tempo e no espaço da Alemanha: não só uma lição universal, mas um eixo ao redor do qual todos os outros acontecimentos e posicionamentos políticos fazem sentido, se movimentam ao redor; há uma teleologia. É completamente antagônico para essa tendência que autores pós-coloniais falem de uma forma distanciada do Holocausto como um problema europeu, por exemplo.

Por extensão, esse posicionamento é contrário a qualquer projeto político que seja pensado como uma estratégia anti-imperialista ou de libertação nacional. Mesmo que alguns sigam a influência dos anti-alemães abrindo mão do compromisso com o sionismo, resta a mesma ideologia que ataca o anti-imperialismo como uma crítica fútil, descarta a maior parte do que se entende por atuação política e trata toda proposição de libertação nacional como a reconstituição de um sujeito autoritário, chegando na mesma conclusão política: defender o liberalismo por causa do fascismo iminente, que é só um inimigo exterior aos valores do liberalismo ocidental – nesse caso, não deve surpreender o eventual passo de uma posição hostil ao anti-imperialismo para uma de apologia aberta dos Estados Unidos.

A “recusa do Estado” vira uma defesa do status quo, o que lembra a crítica que Engels fez aos anarquistas no contexto das revoltas espanholas – ficaram tão preocupados em ser independentes das organizações dos trabalhadores e do estatismo socialista, que terminaram a reboque de aventuras da burguesia.

O apoio às guerrilhas latino-americanas, oposição à guerra do Vietnã e a participação no movimento palestino foram os eixos de articulação da esquerda radical alternativa ao comunismo pro soviético na Europa Ocidental dos anos 70 (sendo que os PCs também apoiavam essas causas). Na Alemanha existia uma situação específica de divisão do país, predominância da ocupação dos Estados Unidos e uma repressão mais contundente do PC, o que fortaleceu a militância radical.

Essa participação foi importante no momento de crescimento da OLP junto do maior isolamento internacional de Israel na década de 70, já que essas ações deram projeção internacional para a causa palestina depois da derrota de 1967 (e a anexação da Cisjordânia) e o setembro negro – essas ações também deram projeção política para organizações que puderam se posicionar como interlocutores com maior independência em relação aos outros Estados árabes.

O surgimento da tendência “anti-nacional” coincide também com o fortalecimento de Israel nos anos 80, a agressividade do seu governo de direita, a guerra contra o Líbano, o mundo árabe passando por uma crise (Iraque em guerra, a “moderação” de Sadat no Egito, Líbia pressionada e se envolvendo no Chad) e a conclusão da Primeira Intifada na Palestina. Não por menos, a outra explosão polêmica envolvendo a afirmação da fração anti-nacional foi a Segunda Intifada e as campanhas de solidariedade às quais os anti-nacionais fizeram oposição.

Hoje vivemos um outro deslocamento geopolítico. Em relação ao sionismo, mais uma onda agressiva e expansionista no comando do Estado de Israel – mais uma campanha para afirmar Jerusalém como capital, a reivindicação do Golã como território, a ofensiva dos colonos na Cisjordânia, a reafirmação constitucional do caráter étnico do Estado. Na Europa, ocorreu um avanço do discurso que iguala antissemitismo e antissionismo, em parte como fruto das contradições envolvendo a população muçulmana naquele continente.

Em relação à geopolítica global, vimos a intervenção dos Estados Unidos contra o Estado sírio apoiado pela Federação Russa e a escalada do conflito dos EUA contra a Rússia através da guerra ucraniana. Ao mesmo tempo, a intensificação da oposição entre Estados Unidos e China, que também se estende de outras formas no território europeu. Esses conflitos desafiam a hegemonia unipolar do ocidente no mundo, que havia afirmado o ápice do seu poder na guerra norte-americana contra o Iraque em 2003.

Nesse contexto, podemos observar para onde caminham as tendências de esquerda para além da diminuta fração anti-alemã, que serve como uma espécie de modelo de referência. Apesar do seu tamanho, sua atuação serviu para levar o debate em determinadas direções e influenciar indiretamente movimentos antifascistas europeus..

Na internet brasileira, alguns esquerdistas traduzem materiais da fração anti-nacional sem fazer referência aos debates onde essa fração nasceu, removendo o possível impacto negativo do contexto e fazendo parecer que são apenas “boas reflexões marxistas contra os desvios nacionalistas”.

O crescimento da influência de ideias dos anti-alemães em círculos autonomistas vai ao encontro da influência exercida por um ex-maoista português, que fala do “DNA fascista da esquerda brasileira” – sem o mesmo estilo “libertário” dos anti-alemães, mas com a mesma pretensão de crítica absoluta. Nesse encontro ganha força a narrativa de uma conspiração internacional “rubro-marrom” originada na Rússia (como se o encontro eventual entre alguns programas nacionalistas e comunistas no contexto russo não se devesse à destruição do país nos anos 90, mas fosse a concretização da teoria teleológica dos anti-alemães).

A princípio, os empréstimos dos antinacionais foram feitos abrindo mão do programa de solidariedade com Israel, somente como contraposição aos anti-imperialistas: mas logo apareceram outros, em outro canto, retomando esse elemento; agora surgem os que defendem o envolvimento da OTAN na Ucrânia e logo podemos esperar a consolidação de posições ainda mais favoráveis aos Estados Unidos, com aspecto de novidade.

Cabe atentar aos desenvolvimentos no Brasil, que do ponto de vista internacional precisa se posicionar nessa ordem instável, nesse momento com um governo de esquerda que já possuía tendências liberais, mas que pode buscar justificativas ideológicas (amplas ou pontuais) para eventuais guinadas pro Estados Unidos. No plano ideológico, presenciamos o aparecimento de uma miríade de tendências nacionais (sobretudo desenvolvimentistas), bem como o crescimento do perfil de ideias comunistas que expressam uma certa tendência para a esquerda radical – essa tendência pode ser disputada por posições liberais de aparência radical.

Sem separar o plano dos interesses internacionais do plano ideológico, essas posições podem ser instrumentalizadas por forças que querem desarticular o anti-imperialismo em geral e o movimento de solidariedade à Palestina em particular. Nesse caso, para além do caráter “estrutural” de conflitos ideológicos, cabe atentar para possíveis operações de influência, artimanhas de relações públicas e astroturfing.

No Twitter, serviços ligados ao aparato estatal dos EUA se dedicaram ao trabalho tão simples de criar contas fakes dedicadas a influenciar a opinião pública em países de língua russa ou árabe, como ficou exposto em dezembro de 2022. Grupos de mídia ou empresas profissionais podem se dedicar a tarefas similares, criando personagens e manufaturando ondas.

Usando como exemplo a questão palestina, no Brasil a solidariedade é um tanto dependente dos meios de esquerda e efetivamente ela é operada por poucos quadros que possuem contatos no exterior, articulam eventos e comunicações. Não é preciso uma grande conspiração estatal para contrapor essa atuação dentro da própria esquerda: bastam poucos quadros articulados e comprometidos, dispostos a bancar nos bastidores transformações que para o público aparecerão como “espontâneas”.

De relevância ainda maior, porém, é como os recursos da “teoria crítica” podem ser mobilizados contra o potencial do Brasil servir de base para um projeto em oposição ao imperialismo e alternativo à hegemonia ocidental.

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