A ascensão do partido nazista ao poder na Alemanha foi marcada por terror e intimidação, mas com frequência ela é tratada apenas como uma escolha democrática, uma vitória exclusivamente eleitoral. A conquista do poder não foi um simples produto de uma disputa eleitoral entre opiniões, nem foi o estabelecimento de uma ditadura apenas uma usurpação repentina da legalidade, mas a culminação de um processo que já estava em marcha desde antes de 1933. Esse processo incluí os métodos que os nazistas utilizaram para chegar ao poder e consolidá-lo, métodos que devem fazer sentido no contexto da política da República de Weimar e em relação aos fins aos quais eles serviam. Neste artigo, vamos explorar os meios que levaram os nazistas ao poder.

A ascensão do partido de Hitler não foi a ruptura brusca de um período de normalidade política. O regime político alemão passava por contradições internas desde antes da grande guerra, com o crescimento do movimento operário e do Partido Social-Democrata (SPD) apesar da repressão estatal, vivendo também as contradições relativas a integração cultural da população católica após a unificação de 1870. Durante a guerra, triunfou uma lógica de exceção e uma camarilha militar exerceu poderes ditatoriais. Na fase final do confronto a situação interna se deteriorava com os conflitos sociais e o risco de revolução. O SPD foi aceito no governo para conter e efetivamente reprimir a explosão revolucionária.

A República de Weimar nasceu da repressão violenta de levantamentos revolucionários como a rebelião espartaquista, propondo reformas sociais progressistas ao mesmo tempo que buscou evitar a oposição reacionária preservando as posições sociais da velha elite imperial. Entretanto, a repressão, as concessões sociais e as concessões conservadoras não foram suficientes para controlar o confronto entre as forças progressistas e as forças reacionárias.

Mesmo com uma constituição ousada, vários partidos ativos, eleições com alta participação e a rotatividade do poder entre dois partidos comprometidos com o republicanismo (o SPD e os católicos do partido de Centro, ambos “perdedores” do período pré-guerra), a Alemanha nos anos 20 continuou vivendo a incerteza e a instabilidade política, uma violenta disputa entre várias forças pelo direito de decidir a exceção, de determinar a correlação de forças por trás das regras do jogo. O uso da força extralegal e medidas de emergência foi moeda comum no período, e nesse caso não serviram para a consolidação do regime republicano.

A legislação de emergência não começou com os nazistas, sendo usada nos anos 20 tanto para reprimir revoltas operárias como para dissolver governos estaduais. Ainda que o SPD tenha tentado usar essa instituição para proteger a República, ela logo foi apropriada por uma camarilha de comandantes militares e usada sobretudo para reprimir as forças de esquerda. A própria reconstituição do exército se deu a partir da construção ideológica dos distúrbios sociais como ameaça interna. Isso não quer dizer que Hitler não foi além ao estabelecer sua ditadura, mas os antecedentes existiam tanto em termos de funcionalidade como de justificação ideológica.

No discurso público com frequência se propõe uma narrativa que ignora as condições do jogo político em prol da ideia de que a Alemanha estava em uma profunda crise por causa do Tratado de Versalhes e que a Crise de 1929 gerou uma crise econômica devastadora, o que teria levado à uma frustração e insatisfação tão grande no povo alemão que então “escolheu os nazistas”. Uma explicação estrutural inadequada e em certo sentido despolitizada. O nazismo desde o seu nascimento buscou não só canalizar a insatisfação, mas também reprimir expressões dessa insatisfação antagônicas ao establishment conservador.

Para isso, desde o início os nazistas atuaram como um grupo paramilitar ao mesmo tempo que cultivavam relações com o Exército, com representantes do velho regime e da burguesia industrial. Os nazistas já usavam métodos violentos e esses métodos cumpriam um papel em um confronto político e social maior do que objetivo abstrato de tomar o poder do Estado.

Apontar estes métodos nos permite ir além de clichês como “Hitler chegou ao poder democraticamente” ou que “os nazistas foram escolhidos pelo povo”. O abuso de afirmações desse tipo se aproveita da falta de uma discussão um pouco mais profunda sobre os acontecimentos que antecederam a tomada do poder pelos nazistas em 1933, que completa 90 anos em 2023.


Os profissionais da violência e os violentos por vocação: militares, paramilitares e oposição à República de Weimar

O partido nazista nasceu da entrada de Hitler, um austríaco que serviu como cabo no exército alemão, em um dos vários partidos nacionalistas de Munique, um pequeno grupo chamado “DAP” (Partido dos Trabalhadores Alemão), que era liderado por Anton Drexler. Hitler assumiu a direção do grupo e o transformou no NSDAP, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.

Uma revolução tinha sido esmagada na Baviera e “o verdadeiro poder passou para a direita” (SHIRER, 2011, p. 33). Essa direita era composta pelo Exército (EVANS, 2005, p. 131), pelos monarquistas, por uma massa de conservadores e uma multidão de soldados desmobilizados depois da Primeira Guerra (IBID.). Além de vários partidos, existiam diversas associações paramilitares de direita (IBID.; HEIDEN, 2010, p. 8).

“O Exército alemão estava profundamente envolvido na política, especialmente na Baviera, onde instalou um governo de sua preferência” (SHIRER, 2011, p. 35) e esse fato é indissociável do início do nazismo. Como nos observa Konrad Heiden (2010, p. 7) – um historiador, jornalista e crítico contemporâneo ao nazismo – nas origens do Nacional-Socialismo está o regime de facto que se estabeleceu em Munique depois da derrota dos revolucionários de esquerda em 1919: um regime militar. Hitler era um veterano que entrou na vida política atuando como um agente da inteligência militar; o organizador do braço paramilitar do partido era o capitão do exército Ernst Rohm. Herman Esser, responsável pelo jornalismo do partido, foi recrutado por Hitler em um escritório de imprensa do exército. Quando o jornal do partido estava prestes a quebrar nos anos iniciais, o dinheiro necessário foi obtido de fundos secretos do exército com o General Franz Ritter von Epp (HEIDEN, 2010, p. 38; SHIRER, 2011, p. 46), que foi um dos líderes da repressão da revolução em Munique, chefe de um grupo de paramilitares e se tornaria ele mesmo militante do partido nazista em 1928. Wilhelm Frick foi outro chefe da polícia criminal de Munique que ajudou o movimento no início e anos depois passou a fazer parte dele. “O movimento nazista até 1923 era composto por membros do Reichswehr e da polícia” (HEIDEN, 2010, p. 9).

Hitler não estava na reunião do DAP (que ele transformaria em NSDAP) para realizar provocações, mas para atuar como um agente político. Defendendo opiniões ativamente contrarrevolucionários e antissemitas, Hitler foi de aluno dos cursos políticos do Segundo Regimento de Infantaria a posição de professor, um “oficial de educação” que doutrinava os soldados e dava respostar para os problemas políticos daquele momento. Ele ainda era pago pelo exército quando se tornou agitador político.

Há de se refletir sobre os caminhos que o exército alemão escolhia para influenciar a política: em janeiro de 1920 o general Luttwitz marchou sobre Berlim e proclamou o nacionalista Wolfgang Kapp como chanceler, no conhecido “Golpe de Kapp”. Uma das motivações do golpe havia sido a repressão do grupo paramilitar e terrorista “Organização Consul”. O comandante em chefe do exército, Hans von Seeckt, pessoalmente um monarquista conservador, se recusou a usar tropas para reprimir golpistas, pois “soldado não atira em soldado”.

Entretanto, o exército não hesitou em reprimir violentamente manifestações contra o golpe na Saxônia, na Turíngia e no Ruhr (MCELLIGOTT, 2009, p. 33), com a característica especial de que no Ruhr uma coalizão de esquerda havia declarado resistência e armado os operários. O golpe fracassou primeiro porque não capturou o governo formado e sobretudo porque enfrentou a oposição de uma greve geral. Apesar disso, nas eleições que seguiram a derrota do golpe, os partidos nacionalistas de direita DVP e DNVP dobraram seus votos.

Mesmo que a extrema direita tivesse bancado atentados terroristas contra políticos importantes, nas elites se desenvolveu a percepção de que existia uma ameaça vinda de movimentos populares não só por conta da Revolução Russa mas pela força demonstrada durante a greve geral contrária ao golpe de Kapp (MERGEL, 2011, p. 479). A combinação desses fatores provavelmente pesou nas considerações estratégicas de militares descontentes com o regime republicano.

Poucos dias depois de tomar o poder dentro do partido em 1921, Hitler criou a tropa de assalto conhecida como SA (ULRICH, 2016, p. 93), que serviria como uma versão partidária das várias associações paramilitares já existentes – rapidamente passaram “a tumultuar reuniões de adversários políticos”, “espancar judeus na rua”, “a SA espalhava o medo e o terror” (ULRICH, 2016, p. 94). Logo de início as ações dos nazistas tiveram o apoio do chefe de polícia de Munique (ULRICH, 2016, p. 94; HEIDEN, 2010, p. 24), Ernst Pöhner, nomeado pelo governo conservador da Baviera (chefiado por Gustav Ritter von Kahr, do BVP), que por outro lado perseguia comunistas e bancava grupos de extermínio de extrema-direita – esse mesmo governo havia expulsado judeus orientais do estado.

Shirer, em sua obra clássica sobre o Terceiro Reich, fala de “proteção e às vezes apoio das autoridades”, que o governo e a polícia toleravam os métodos de terror e intimidação dos nazistas (SHIRER, 2011, p. 38; EVANS, 2005, p. 218); em seu longo livro sobre o papel do exército na política alemã, John Wheeler-Bennett (1953, p. 163) diz que Hitler saiu de posição de cabo desconhecido para líder político conhecido com a assistência da Reichswehr [Forças Armadas], enquanto Richard J. Evans afirma que Hitler foi incentivado por seus oficiais superiores (EVANS, 2005, p. 207).

As SA correspondiam ao exemplo das colunas de esquadristas do fascismo italiano. Como é bem descrito na obra de Renzo de Felice, mesmo que operários e camponeses de esquerda mostrassem disposição para violência enfrentando a polícia, suas manifestações eram localizadas, dependentes do seu local de trabalho ou moradia, enquanto os fascistas passaram a reunir veteranos de guerra e filhos da classe média em formações paramilitares que se juntavam em caminhões para fazer incursões em outros lugares, realizar ataques em sedes socialistas e sindicais. Os nazistas não só aprenderam isso do ponto de vista da violência, mas da propaganda: uma manifestação não precisa ser uma mobilização da população local (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 78), ela pode ser feita com destacamentos motorizados das SA que distribuem panfletos ostensivamente, por exemplo. Enquanto os social-democratas se valiam de suas poderosas associações locais (sindicatos, clubes, ajuda mútua, etc…), os nazistas podiam dar apoio para suas células menores movendo destacamentos da SA.

Nesse paramilitarismo existia um elemento político de inovação. As organizações “paramilitares” adversárias, a Reichsbanner “em defesa da república” e a Roter Frontkämpferbund dos comunistas surgiram depois, como uma resposta. A Reichsbanner surgiu reunindo veteranos republicanos e associações de defesa dos social-democratas, no intuito de também se mobilizar no caso de levantamentos comunistas e servindo eventualmente para a realização de marchas políticas baseadas na simbologia republicana (a bandeira preta-vermelha-dourada). A Stahlhelm veio antes e estava ligado ao partido nacional-conservador DNVP, mas ainda estava muito limitada ao seu papel paramilitar – não foi aproveitada ao máximo para a propaganda, a não ser no final dos anos 20, quando já começa a ser aparelhada por nazistas.

Diferente de operários armados realizando uma insurreição pela esquerda ou mesmo associações secretas de direita que funcionavam como esquadrões da morte, os nazistas aparecem com uma ativa violência de rua e de massas. Hitler descartou logo de início de que a SA serviria como alternativa ao exército alemão, um novo exército ou uma ferramenta para tomar o poder, concebendo como um instrumento de propaganda e terrorismo contra adversários, o que por sua vez foi bem recebido pelos militares (HEIDEN, 2010, p. 84; WHEELER-BENNET, 1953, p. 163 e p. 203).

Com esses métodos, em 1922 os nazistas dominavam as ruas de Munique (ULRICH, 2016, p. 95). A Baviera era um estado em que as estruturas da direita militante alemã – paramilitares, monárquicas, reacionárias ou nacionalistas – tinham força e onde a direita governou buscando usar ao máximo a autonomia estadual para frustrar as transformações constitucionais representadas pela República de Weimar e as iniciativas do governo em Berlim controlado por republicanos mais comprometidos. “A capital bávara virou um imã para todas as forças que queriam derrubar a República na Alemanha” (SHIRER, 2011, p. 34). No ano de 1922 Hitler e os nazistas estavam bem inseridos nessa coalizão, e graças a ela Hitler fez seu primeiro discurso em um comício de rua (ULRICH, 2016, p. 95). Em um evento com as associações patrióticas em Coburgo em outubro de 1922, Hitler levou 800 membros da SA que fizeram uma “orgia de espancamentos” contra a esquerda na cidade (IBID.); o “culto à energia” no partido significava a SA patrulhando as ruas e realizando agressões contra indivíduos encurralados (HEIDEN, 2010, p. 35).

Com esses atos de propaganda agressiva – “palavras brutais e atos selvagens” (Heiden) – o NSDAP passou a se expandir com a anexação de outras associações nacionalistas pré-existentes, isto é, a violência cumpriu uma função para além de oprimir e desorganizar os partidos de esquerda, mas serviu como aglutinador de forças direitistas radicais.

Quando Hitler fez sua tentativa de “Golpe da Cervejaria” em novembro de 1923, não foi um intento isolado de nazistas ocupando espaços para tomar o poder, mas um esforço político de articulação de todas as forças de direita, o governo de emergência que controlava a Baviera e os militares (SHIRER, 2011, p. 66). Junto de Hitler estava o general Erich Ludendorff, que em 1925 teria sua candidatura à presidência apoiada pelos nazistas. Comandante de primeira importância na Grande Guerra e governante militar de facto da Alemanha em 1916, Ludendorff tinha suas próprias convicções de regime militar, social-darwinismo, antissemitismo e teorias da conspiração anticatólicas. A essa altura, Hitler também era diretor de uma coalizão de associações patrióticas chamada Kampfbund, que era ligada a Ludendorff.

Para Wheeler-Bennet (1953, p. 114), o golpe da cervejaria expôs uma divisão política que ainda se manifestava no exército alemão: os “militaristas não-reestruturados” representados pelo golpe de Kapp três anos antes e por Ludendorff naquele momento, e os “novos pensadores” representados por von Seekt. Os dois setores não acreditavam no republicanismo e acreditavam na proeminência dos militares, mas estariam divididos por seus métodos, mais abertos ou sutis.

Uma das coisas que motivou Hitler em sua aventura golpista foi a previsão de que os outros – militares ou políticos – dessem um golpe sem ele, então tentou compensar essa possibilidade com um gesto espetacular que o colocasse no centro dos acontecimentos (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 117; SHIRER, 2011, p. 67; ULRICH, 2016, p. 118). A tentativa falhou, porém em nenhum momento ela foi “contra” a máquina do Estado e sim uma tentativa de manobrar a política do aparato estatal a seu favor. Hitler não queria tomar o poder contra o Exército ou sem ele, nem queria uma guerra civil militar (SHIRER, 2011, p. 72).

O caminho do triunfo de Hitler em 1923 era ter seu partido instalado por von Seekt depois de uma “marcha sobre Berlim” (imitando a “Marcha sobre Roma” dos fascistas).

Apesar de não ter colocado Hitler no poder, o golpe e o julgamento subsequente serviram como mais um grande ato de propaganda dos nazistas (SHIRER, 2011, p. 78), que mais uma vez contaram com a leniência do Estado aparelhado por camarilhas conservadoras. “O aprendizado mais importante que Hitler teve com o fracasso da empreitada (…) foi reconhecer que, se quisesse o poder, deveria seguir por outro caminho: não o caminho do golpe e sim a aparente legalidade da aliança com o exército do Reich”, escreve Ulrich (2016, p. 137).

Emergências recorrentes, disputa pela exceção

O próprio ambiente onde surgiu o partido nazista já era um ambiente marcado pela exceção, como vimos: um grupo de parlamentares tentou realizar uma revolução, que por sua vez foi reprimida duramente pelo exército e grupos paramilitares – quando Hitler forja o NSDAP, a Baviera estava sob um governo tutelado por militares e ele mesmo era um agente político do exército.

A questão da legitimidade estava muito atrelada aos problemas de definição da competência: a disputa entre estados e federação, cortes especiais e cortes ordinárias; ou no plano social, a disputa entre reivindicações das velhas classes aristocráticas e o movimento operário que pressionava por uma continuidade revolucionária.

A ideia de ditadura estava inserida na consciência alemã pela ditadura militar de Ludendorff e Paul von Hindenburg em 1916, que tomavam decisões independente das outras instituições e do próprio Imperador (MERGEL, 2011, p. 474). Em outubro de 1918, quando ocorreu uma revolução na Alemanha contra a guerra e as autoridades constituídas, os social-democratas assumiram a proa do processo e usaram radicais de direita para suprimir os elementos que queriam uma revolução comunista de inspiração bolchevique (MERGEL, 2011, p. 476); na verdade, o líder social-democrata que proclamou a república, Philipp Scheidemann, considerava a extrema-esquerda uma ameaça maior do que os inimigos externos (MCELLIGOTT, 2013, p. 39).

Discussões sobre a constituição de Weimar normalmente incluem o fato dela conter em si disposições pensadas para a excepcionalidade (artigo 48), a começar pelos poderes do Presidente que podia tomar medidas de emergência e cuja extensão desse poder servia de base para uma ditadura (e assim era tido em sua concepção fundamental, o presidente como líder plebiscitário acima dos partidos). Friedrich Ebert, o presidente social-democrata do início da república, governou usando decretos de emergência – usou eles em pelo menos em 136 ocasiões (EVANS, 2005, p. 114). Depois que os militares fuzilaram sumariamente revolucionários no Ruhr em 1920, Ebert legitimou as execuções com um decreto que as reconhecia como “legais” em retrospecto, como uma questão de “ordem pública” (EVANS, 2005, p. 114).

Tomemos como exemplo os acontecimentos que levaram à tentativa de golpe de Hitler em 1923, na Baviera. Ocorreu uma disputa pela legitimidade em que as partes em conflito tentavam mostrar sua força efetiva de decidir um estado de exceção. O conflito se deu no plano institucional entre o governo federal em Berlim e o governo estadual da Baviera, mas refletia questões sociais mais amplas.

Como protesto pelo governo federal alemão ter encerrado a resistência passiva à ocupação francesa da região do Ruhr, em setembro de 1923, o presidente conservador da Baviera Eugen von Knilling transformou Gustav Ritter von Kahr em “comissário geral” com poderes ditatoriais, usando um artigo especial da constituição estadual. Eles também cobravam medidas duras contra os movimentos revolucionários – em agosto greves haviam se espalhado por todo país e precipitado a queda do chanceler Wilhelm Como (substituído pelo liberal Gustav Stresemann). A primeira medida de von Kahr foi decretar estado de emergência.

O governo alemão, nas mãos do social-democrata Friedrich Ebert, respondeu no dia 27 de setembro com um estado de emergência que depositou poderes executivos plenos no ministro da defesa, Otto Gessler. Um liberal que foi nomeado para o ministério da defesa depois do golpe de Kapp, Gessler não acreditava em um rígido controle civil do exército, mas na cooperação com o comando do exército, que ele reconhecia como autônomo, como um “Estado dentro do Estado” (MUHLE e SCRIBA, 2014; SHIRER, 2011, p. 64; WHEELER-BENNETT, 1953, p. 103). Mesmo do ponto de vista formal o Ministério da Defesa não controlava o comando do exército, que concentrava os poderes do antigo gabinete militar do Kaiser e do antigo cargo de chefe do grande estado maior; para Richard J. Evans, “o Exército era uma lei em si mesmo” (EVANS, 2005, p. 132). O ministro manteve uma relação próxima com o general que exercia o papel de comandante em chefe do exército, Hans von Seeckt, com ambos trabalhando no sentido da reconstrução do exército alemão e de sua projeção para o leste (Seeckt também havia sido organizador da luta contra o Exército Vermelho nos países bálticos).

No dia 22 de outubro, um grupo de comunistas em Hamburgo (no norte da Alemanha) ensaiou uma revolta que foi esmagada. Além de barricadas em bairros operários, os rebeldes haviam assaltado estações policiais; 17 policiais e 21 revolucionários morreram no confronto. A revolta foi obra de lideranças locais, sem apoio da direção nacional do Partido Comunista, mas ao mesmo tempo serviu para reforçar o clima de “caos nacional”. Para piorar, um grupo de separatistas da Renânia declarou independência – tropas alemãs eram proibidas na região que era ocupada por franceses, que a princípio apoiaram o projeto, mas a revolta de habitantes locais e a reprovação anglo-saxônica fez com que os franceses retirassem o apoio. Os separatistas não foram duramente reprimidos, já que deram para trás sem o apoio francês: alguns foram presos e outros fugiram para o exílio, um dos líderes foi assassinado por ativistas da direita.

Gessler cumpriu o papel de interventor por pouco mais de um mês, transferindo seu poder executivo de emergência para von Seekt depois da tentativa de golpe liderada por Hitler em Munique. O político liberal permaneceria no cargo de ministro da defesa até 1928, entretanto, quando caiu por servir de bode expiatório para as irregularidades financeiras associadas ao rearmamento secreto do exército alemão.

Quando Ebert convocou von Seeckt para uma reunião antes de decretar seu estado de emergência, no intuito de saber a posição do exército, von Seeckt respondeu que “o exército está comigo”, flertando com uma posição vaga da qual ele já se beneficiara no passado (no golpe de Kapp). Podemos ler na posição de von Seeckt nesses anos um jogo que consistia em não apoiar intentonas golpistas mas se aproveitar delas para pressionar os incumbentes em Berlim a cooperar com exército (mantendo uma espécie de carta no coturno).

No setembro de 1923, von Seeckt parece ter organizado suas prioridades em função de agitações de esquerda daquele momento, o risco de separatismo na Baviera e os planos de golpe de um grupo secreto do Reichswehr que ele mesmo havia ajudado a estabelecer (SHIRER, 2011, p. 65), a “Reichswehr negra” que servia como esquadrão da morte (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 93). A tentativa de golpe em questão também seria uma retaliação pelo fim da resistência passiva no Ruhr, liderado pelo oficial Bruno Ernst Buchrucker, que foi preso e depois se juntaria ao NSDAP.

Para von Seeckt, a situação em 1923 foi uma “grande oportunidade para justificar sua teoria de um Exército acima da política atuando como guardião do Estado” (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 108). Muitos atores políticos na época desejavam ou temiam que ele assumisse como ditador militar, cargo para o qual ele receberia apoio da direita nacional do parlamento além dos militares, mas von Seeckt não teve interesse apesar de ter considerado – ainda assim, sua ideia de “neutralidade” e “Exército acima da política” significava intervir diretamente nas decisões do governo (EVANS, 2005, p. 132).

Nos estados da Saxônia e da Turíngia, governados por coalizões de esquerda (SPD + comunistas), se desenvolveram programas de socialização e criação de guardas operárias, o que gerou uma crise com os conservadores. Registros da comunicação entre comunistas alemães e a Internacional mostram intenções revolucionárias na criação de guardas operárias, mas a preocupação maior eram com tropas paramilitares da Baviera, não com o exército. Nenhum desses governos tinha cometido um ato fora de legalidade ou decretado exceção como os governantes bávaros. Além disso, o governo da Saxônia denunciava o envolvimento de unidades do exército com grupos paramilitares de direita e do IV Grupo do Exército com o NSDAP em particular (MCELLIGOTT, 2009, p. 33). A supressão da esquerda (SHIRER, 2011, p. 65; ULRICH, 2016, p. 121) foi notória: Von Seeckt usou o recurso da “Reichexekution” para dissolver o governo dos dois estados.

O governo da Turíngia sofreu uma intervenção pelo General Reinhardt, que falava exageradamente de um “terror vermelho”, reprimiu mineiros que estavam em greve e fez prisões em massa de membros de partido de esquerda, inclusive vereadores e políticos conhecidos. O exército ocupou a cidade de Weimar e colocou tropas fechando o parlamento estadual. A repressão na Saxônia foi mais violenta, sem uma ordem formal partindo do governo federal e se valendo de fuzilamentos contra comunistas. Ainda assim, existem registros que mostram que os generais ansiavam por uma ditadura para reorganizar o país (MCELLIGOTT, 2013, p. 204).

Na Baviera, o governo era exercido por um triunvirato ditatorial do general Otto von Lossow, comandante do exército na Baviera, o coronel Hans von Seisser que controlava a polícia e von Kahr com seu cargo de comissário (SHIRER, 2011, p. 65). Kahr se recusou a aplicar decisões contrárias ao partido nazista, como o banimento do seu jornal, e repeliu a aplicação da Lei para a Proteção da República. Lossow tentava proteger os nazistas de medidas que eram ordenadas por von Seeckt, mas quando Hitler tentou seu golpe da cervejaria o triunvirato o abandonou e reconheceu as exigências de von Seeckt – a justificativa ideológica era de que o comandante-em-chefe havia cumprido a tarefa de suprimir os comunistas que ameaçavam a Alemanha. Para Wheeler-Bennett (1953, p. 136), Hitler desviou a atenção para si com a tentativa de golpe e desarmou o conflito de von Seeckt com Ludendorff e Lossow; já para Volker Ulrich (2016, p. 121), o triunvirato já estava de antemão alinhado com von Seeckt – de fato, as atitudes tomadas pelo governo de emergência da Baviera conduziram o poder de decisão para o comandante do Exército, já que Ebert decretou estado de emergência nacional.

Apesar de von Seekt não desejar uma posição além de comandante do exército ou se desfazer do governo civil, junto do exército ele governou a Alemanha através do estado de emergência até fevereiro de 1924. Os generais governavam através dos sete distritos militares e interviam em várias áreas da política, inclusive questões econômicas e trabalhistas (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 110). A atuação do comandante-em-chefe transformou o Exército no “fator político isolado mais importante no Reich” (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 119).

O historiador Anthony McElligott argumenta que o artigo 48 e o estado de emergência “ganharam” o exército para o governo (MCELLIGOTT, 2009, p. 34) – quer dizer, o governo republicano conseguiu estabilidade e a aquiescência dos militares dando a estes um dispositivo de emergência que permitia a realização de intervenções sem a necessidade da realização de um golpe de estado.

Mesmo a “Lei de Proteção da República” tendo sido criada para os terroristas de direita, ela estava abertas às interpretações e variava segundo a competência de quem aplicava: então efetivamente ele reforçou a lógica do estado de emergência contra os movimentos operários (MCELIGGOT, 2013, p. 89 e 123). A violência usada contra os esquerdistas – na Saxônia, na Turíngia, em Hamburgo ou no Ruhr – contrastava com o tratamento dispensado às forças da ultra-direita.

Os social-democratas e comunistas continuavam com seus parlamentares, no entanto, e o governo do liberal Gustav Stresemann foi derrubado em um voto de desconfiança do parlamento. Stresemann não era o responsável primário pelos acontecimentos, mas havia servido como um interlocutor importante as potências ocidentais e desempenharia como ministro das relações exteriores no próximo governo até 1929. Stresemann também governou com mecanismos de exceção, mas no plano da política econômica. Depois dos acontecimentos de 1923 os ocidentais perceberam a necessidade de rever a postura dura com a Alemanha e preparam planos de crédito para o país.

Stresemann sofreu com o mesmo problema que derrubou Gossler e o governo centrista do chanceler Wilhelm Marx que o sustentava: foram bodes expiatórios de problemas que estavam acima deles. O SPD deu o voto de desconfiança contra o governo Marx preocupado com rearmamento e o vínculo com grupos paramilitares de direita, mas por trás disso estava a presidência (a de Hindenburg no governo Marx) e o Exército. São casos ilustrativos sobre o problema institucional da República de Weimar, já que a responsabilização é questionável na sua profundidade mas o custo de instabilidade era real e imediato.

Stresemann foi sucedido por Wilhelm Marx no início de 1924, mas perante a oposição dos parlamentares do SPD à uma extensão dos poderes de exceção para tomar decisões econômicas, Marx solicitou ao presidente Ebert a dissolução do parlamento e eleições adiantadas, o que foi concedido.

Isto quer dizer que temos um padrão de excepcionalidade na República de Weimar – esses são apenas alguns exemplos que estão bem expostos na literatura clássica sobre o período, mas também são bastante explorados na literatura acadêmica especializada.

É importante atentar também para o que acontecia no contexto da legalidade ordinária. O judiciário era dominado por uma casta prussiana que dava um combate desproporcional aos militantes operários e socialistas (MCELIGGOT, 2013, p. 123) – a visão republicana não era predominante e partidos com alta adesão de juízes, como o nacional-conservador DNVP, representavam a visão de que “democracia é incompatível com justiça” (MCELIGGOT, 2013, p. 125). A posição do judiciário e seu vínculo com as velhas elites fundamentava uma justificativa para uma cruzada punitiva contra perturbadores da ordem social, o que já incluía os social-democratas apesar da moderação republicana e anticomunismo comprovado destes (provados na repressão de levantamentos revolucionários).

Mesmo no campo da litigância por ofensas morais, ataques à símbolos do Estado e libelos, a inclinação parcial do judiciário estava exposta (MCELIGGOT, 2013, pp. 126-129). As cortes eram tolerantes com difamações dirigidas contra líderes republicanos ou atos como a destruição da bandeira republicana (negra, vermelha e dourada) enquanto eram rígidas e punitivas com ataques a membros do status quo conservador ou desrespeito com a bandeira imperial (preta, branca e vermelha). Rigorosamente, atacar a bandeira republicana era um crime pela Lei de Proteção da República, mas isso era desconsiderado nas decisões que muitas vezes discorriam sobre a falta de legitimidade do regime republicano (que sua proclamação teria sido feita fora da legalidade, por exemplo). Sabe-se que Ebert morreu dedicado a contrapor ataques feitos contra sua honra, mas em um dos processos os juízes consideraram que era aceitável que ele fosse chamado de “traidor”, por ter servido como interlocutor de grevistas em uma fábrica de munição no ano de 1918 (seu papel era acelerar o fim da greve).

Temos ainda exemplos como do assassino de Kurt Eisner e do próprio Adolf Hitler que tiveram suas penas reduzidas pela “motivação patriótica” de seus crimes, situação que se repetiu em outros julgamentos de criminosos de direita (EVANS, 2005, p. 173). A desproporção era clara nos julgamentos de assassinatos políticos, como por exemplo os dados de Emil Julius Gumbel comparando os 22 assassinatos cometidos por esquerdistas entre o fim de 1919 e 1922 levaram a 38 condenações, em média 15 anos de prisão e dez execuções, enquanto 354 assassinatos da direita terminaram em 24 condenações, uma média de quatro meses de prisão e sem uso de pena capital (EVANS, 2005, p. 172).

Felix Fechenbach, jornalista de esquerda ligado ao SPD, foi condenado em 1919 por publicar documentos que desmentiam o governo imperial sobre as origens da guerra em 1914 – sua condenação como “traidor” foi usando como referência uma lei de emergência que o próprio SPD proclamou para combater revolucionários em 1918 (IBID.).

No mesmo período crescia entre os juízes e os partidos de direita o discurso de que as cortes estavam supostamente “amarradas” perante a criminalidade e que parte da culpa disso era a noção de “justiça social” atrelada ao constitucionalismo de Weimar (MCELIGGOT, 2013, p. 131) – havia um discurso e uma percepção de “aumento” do crime enquanto efetivamente os índices criminais estavam sendo reduzidos (e alguns crimes voltam a subir por causa da violência política).

O campo da justiça criminal e da ordem pública acompanhou a intensificação da lógica de emergência: os decretos presidenciais de emergência de 1930 e 1931 criaram cortes especiais, permitiram cortes ordinárias dispensar o papel de advogados de defesa e de investigações anteriores, julgamentos sumários presididos por apenas um juiz, em que os acusados normalmente eram jovens de classe baixa (MCELIGGOT, 2013, pp. 134-136). Nas palavras de Evans, a democracia alemã não podia esperar muito apoio nem de seus militares, nem do serviço civil (EVANS, 2005, p. 133). A polícia tinha uma longa tradição de perseguição contra movimentos socialistas e não eram entusiastas da nova ordem (EVANS, 2005, p. 312).

Mesmo a criação de um Estado de bem estar social foi acompanhada por um crescimento do controle policial e de doutrinas de “higiene racial”, estabelecendo precedentes institucionais para a ideologia racista radicalizada que singularizou o movimento nazista no poder (EVANS, 2005, p. 180); esses precedentes eram parcialmente equilibrados pelos comunistas que reivindicavam direitos em um discurso antipolicial e pelos católicos que defendiam seus princípios doutrinários contra a eugenia.

Eleições, caos e intrigas

A partir de 1930 as eleições ficaram cada vez mais violentas (EVANS, 2005, p. 310) e aqui se reproduziu o padrão de parcialidade do sistema judicial e das forças policiais (EVANS, 2005, p. 313). A tolerância com as SA contrastava com o tratamento dispensado aos comunistas, que eram vistos como criminosos, tinham seus bairros (que eram pobres) assediados e frequentemente eram baleados. Evans cita ainda o caso do deputado social-democrata Otto Buchwitz, que era perseguido e tinha comícios atacados pelas SA – a polícia nunca fez nada, mas quando ele perdeu a imunidade de seu cargo o prenderam por “posse ilegal de armas”, pois carregava uma pistola (cujo processo de regularização havia sido atrapalhado).

Nesse período os nazistas estavam, de fato, em uma ascensão que contemplava a política parlamentar além da violência – não eram só um grupo paramilitar. No dia 5 de outubro o chanceler Brüning recebeu Hitler em uma reunião depois das eleições: nessa ocasião o líder nazista falou sobre “destruir” o SPD e atacar a Rússia como “reduto do bolchevismo”, citando também o desejo de alianças com Itália, Inglaterra e Estados Unidos (ULRICH, 2016, p. 201). É possível colocar que as ações que seus seguidores perpetravam na rua serviam a uma lógica de um projeto de Alemanha que ele apresentava para o atual governo.

Cada vez mais os nazistas aumentavam seu apelo nas fileiras do exército (SHIRER, 2011, pp. 139-140). Em setembro de 1930, Hitler atuou como testemunha de defesa em processo de jovens oficiais que eram acusados de fazer propaganda favorável ao NSDAP dentro dos quartéis, contrariando orientações do Ministério da Defesa, ocasião na qual ele declarou que o Exército era “o mais importante instrumento para a restauração do Estado e do povo alemão” (ULRICH, 2016, p. 205). Teriam sidos essas declarações que causaram forte impressão no general Kurt von Schleicher na direção de proteger e apoiar os nazistas, para usar os nazistas de acordo com objetivos da liderança militar do Reich (ULRICH, 2016, p. 206-207; WHEELER-BENNETT, 1953, p. 222); de forma geral o discurso foi bem recebido pelos alto comandantes militares da Alemanha (SHIRER, 2011, p. 142).

O governo de direita do chanceler Heinrich Brüning (1930-1932) foi um governo minoritário que se afastava do parlamento e dependia de decretos de emergência assinados pelo presidente Hindenburg; a situação piorou no governo do ainda mais conservador e obscuro von Papen (MCELLIGOTT, 2009, pp. 39-40). A deterioração do parlamentarismo com Brüning não só parece desejável para a estratégia do NSDAP, como era de fato entendida assim por seus membros (ULRICH, 2016, p. 191). Os nazistas assumiram uma política obstrucionista no parlamento em geral, não só em relação ao governo. Não estavam satisfeitos com a ascensão de um regime presidencial de facto (ULRICH, 2016 pp. 191 e 208). A política dependia menos do parlamento, mais dos confrontos de rua e das conspirações de camarilhas, sobretudo das intrigas lideradas pelo general von Schleicher, arquiteto da nomeação de von Papen (IBID.). Brüning “iniciou o desmantelamento de liberdades democráticas e civis”, o que incluía banimento frequente não só de edições de jornais comunistas, mas também jornais liberais (EVANS, 2005, p. 291).

Sobre a violência no ano de 1931, Ulrich fala de situação semelhante a uma guerra civil e que geralmente os atos de violência vinham das SA, que faziam “expedições de conquista” e aparições surpresa em bairros proletários ou cidades que votavam na esquerda (ULRICH, 2016, p. 208). “As ações organizadas por comunistas e social-democratas geralmente eram medidas de auto defesa contra a postura cada vez mais agressiva das SA”, acrescenta o autor (IBID.). Em janeiro de 1931 as SA possuíam 77 mil membros.

Em março de 1931, Rohm (novamente ocupando o papel de chefe das SA) se articulava com von Schleicher para organizar as SA de uma forma que servissem como destacamentos subordinados ao exército no caso de um levantamento popular (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 227; SHIRER, 2011, p. 161). A aproximação com os nazistas também se dava em função da convicção militar de que seria necessário fazer a guerra contra a Polônia, o que inclusive foi citado anos depois nos julgamentos de Nuremberg (WHEELER-BENNETT, 1953, p. 228).

Contra isso, a alternativa aventada pelo gabinete Brüning era criar uma “grande milícia nacional” subordinada à organização dos veteranos nacional-conservadores Stahlhalm e que incorporasse tanto as SA como os Reichsbanner (associado aos Social-Democratas), o que já prefigurava o que seria a aceitação dos militares de algo semelhante porém liderado pelos nazistas. Ao lado de seu ministro da defesa, o general Groener, Brüning também tentava articular algum tipo de restauração monárquica para anular o momento de ascensão dos nazistas, mas nesse período von Schleicher articulava intrigas para proteger as SA e desmoralizar Groener (SHIRER, 2011, p. 160).

Em março e abril de 1932 ocorreram as eleições presidenciais, em que a janela do debate político se moveu decididamente para a direita: Hitler foi candidato e o SPD junto dos liberais apoiaram Hindenburg, que venceu as eleições, porém Hitler teve um sólido segundo lugar com mais de 13 milhões de votos (contra 19 milhões do velho general). Os comunistas postularam seu líder Ernst Thälmann como candidato independente dessas duas opções.

Os governos estaduais vinham cobrando medidas urgentes contra as SA e uma aliança social-democrata/liberal tentava organizar uma nova frente “contra nazistas e comunistas”, a “Frente de Ferro”, talvez tentando quebrar o momentum do anticomunismo da extrema-direita (“também somos contra o comunismo, mas somos contra o nazismo”).

Os conservadores que estavam ao redor de Brüning viram uma oportunidade de controlar os nazistas que cada vez mais faziam imposições ao campo direitista. O chanceler tentou negociar o apoio dos nazistas no parlamento e um compromisso de paz nas ruas, sem oferecer um cargo substancial no governo. Parte do cálculo era de que as condições de negociação haviam mudado pois os nazistas tinham sido derrotados em uma eleição presidencial em que boa parte do voto no adversário foi um voto anti-nazi.

No outono de 1931, o Exército estava por trás de várias tentativas de inclusão dos nazistas no governo enquanto os nazistas exigiam novas eleições parlamentares (ULRICH, 2016, p. 220). Hitler se aproximava de Hindenburg e se juntava a Hugenberg, líder do DNVP, para fazer manifestações da “oposição nacional”. Hindenburg por sua vez, ao invés de confiar no governo que ele sustentava, exigia mais ministros de direita. Era improvável que Hindenburg mudasse seus posicionamentos em uma eleição presidencial que ele achou “desagradável”: não por ter concorrido com Hitler, que foi respeitoso, mas por ter sido apoiado pelo SPD em eleições que ele queria ter adiado – na verdade, a propaganda nazista de que a esquerda oportunista estava tentando se “apropriar” do velho general surtiu efeito nele mesmo.

Não obstante essa situação, o eixo da lógica conservadora de Brüning é de que os nazistas deviam aceitar o governo para reconstruir o país de forma ordeira, com um regime forte, enquanto o eixo da lógica da propaganda nazista era de que só eles estavam comprometidos com a luta contra os comunistas, aumentando a violência nas ruas (além disso seguiam apelando para agitação da insatisfação econômica; tentavam tirar o máximo do governo na lógica de negociações da direita mas não abriam mão de parecer independentes em sua propaganda). Essa mesma lógica foi usada pelos nazistas em seus esforços para convencer industriais e banqueiros a deixar de apoiar Brüning (ULRICH, 2016 p. 251).

Brüning e Groener tentaram banir as SA em meio ao caos que se espalhava, ordenando algumas batidas policiais em sedes do grupo, banindo as camisas marrons (nesse período eles usavam camisas brancas substitutas) e tornando-os efetivamente ilegais no dia 13 de abril de 1932, três dias após as eleições. Hitler assumiu uma atitude de cooperação com o governo nesse caso, mas as SA continuaram atuando.

A atuação das SA era benéfica para Hitler mas ao mesmo tempo ameaçava suas declarações de estar comprometido com a legalidade – político hábil, o líder nazista usou essas pressões externas para controlar as SA e possíveis adversários dentro de seu partido. No início de 1932, as SA tinham 290 mil membros. As medidas de Brüning não iriam longe.

O general Schleicher conferenciou com os sete comandantes das regiões militares da Alemanha, deixando claro de que ele e o comandante do exército, agora o general von Hammerstein, eram contra a medida de Brüning; depois ele informou Groener que o Exército não aprovava as ações contra as SA (WHEELER-BENNET, 1953, p. 242; ULRICH, 2016, p. 265).

As medidas do governo contra as SA foram mal recebidos nos círculos da direita nacional-conservadora, que viu nelas um ataque contra patriotas que combatiam os comunistas. Hindenburg assinou o decreto com má vontade e ficou frustrado que Brüning não preparou algo semelhante para as autodefesas dos social-democratas. Schleicher decidiu avançar contra o governo Brüning, marcando um encontro com Hitler ao lado do comandante do exército, delimitando os termos de um pacto com os nazistas (WHEELER-BENNET, 1953, p. 242; ULRICH, 2016, p. 266).

A intriga de Schleicher começou com o boato de que Groener teria “se vendido aos social-democratas”. Groener foi obrigado a se explicar perante o parlamento, onde foi humilhado pela bancada nazista. Schleicher se dirigiu à Groener após o ocorrido recomendando que ele saísse de “licença médica” e, ao receber uma resposta negativa, disse diretamente que o ministro não tinha mais a confiança do Exército – Groener renunciou (WHEELER-BENNET, 1953, p. 243). Depois Hindenburg pediu a renúncia do próprio chanceler Brüning.

Seguindo o acordo com Schleicher os nazis deveriam apoiar um gabinete chefiado por von Papen e em troca ganhariam a suspensão do banimento das SA, bem como a dissolução do parlamento para eleições adiantadas. As duas coisas foram inseparáveis, pois o processo eleitoral foi marcado pela violência (SHIRER, 2011, p. 165). Quatorze dias antes das eleições (que ocorreram no dia 31 de julho), os nazistas foram escoltados pela polícia em uma marcha provocativa no subúrbio trabalhador de Altona, onde 19 pessoas morreram baleadas e 285 foram feridas (IBID.).

Nisso ocorreu outro episódio importante para a lógica de exceção na Alemanha: o golpe contra o governo estadual da Prússia, um bastião de uma aliança SPD-Centro-Liberalismo desde 1920. Mais importante, a Prússia era um estado maior do que todos os outros juntos. O estado já vinha sendo abalado pela violência dos nazistas, mas Papen em reunião do seu gabinete declarou que o governou estava perseguindo os nacional-socialistas quando o combate deveria ser travado contra os comunistas. Papen foi nomeado interventor para a Prússia por Hindenburg e o governo foi dissolvido; Papen decretou emergência militar e transferiu o poder executivo para Schleicher, que mobilizou o general Gerd von Rundstedt para aplicar as providências operacionais da lei marcial.

O chanceler via nisso um experimento na direção do estado autoritário que ele desejava, ao passo que os nazistas receberam bem a intervenção por ela ter retirado os social-democratas do poder através da força militar. Não houve resistência como na época do golpe Kapp, em parte pelo afastamento do SPD das lideranças sindicais e em parte porque o próprio Schleicher tinha estabelecido um bom canal com os sindicatos, inclusive com a promessa de que um novo sistema política incluiria um parlamento corporativo baseado em sindicatos (WHEELER-BENNET, 1953, p. 255).

Como resultado de sua campanha violenta, os nazistas conquistaram resultados sem precedentes, conquistando 230 cadeiras e dobrando sua bancada parlamentar, se tornando o partido mais forte no Reichstag. Os social-democratas ficaram com 133 cadeiras e os comunistas aumentaram sua bancada para 89.

É uma observação comum de que a república democrática morreu pelas mãos da intriga de Schleicher (SHIRER, 2011, p. 163), que queria instituir um governo presidencial independente do parlamento, com a constituição suspensa e apoio do exército (WHEELER-BENNET, 1953, p. 245). Para isso, ele sempre tentou evitar compromissos enquanto fazia suas manipulações (WHEELER-BENNET, 1953, p. 249) e imaginava que podia cooptar o apoio dos nazistas, mesmo que para tivesse que tirar as SA de Hitler. Além disso, suas manobras políticas causaram divisão e paralisia entre os social-democratas, o que pode ter contribuído ao fortalecimento dos comunistas (WHEELER-BENNET, 1953, p. 257).

O gabinete de Franz von Papen era ainda mais conservador que o anterior, recheado de aristocratas da classe Junker de latifundiários prussianos. O general von Schleicher virou ministro da defesa.

Segundo McElligot (2009, p. 42), a ditadura de gabinete de von Papen usou medidas de emergência com mais amplitude e de forma mais draconiana que o governo Ludendorff-Hindenburg durante a guerra. O exército “se preparava para uma lei marcial” e “decreto após decreto dava poderes amplos para a polícia e o judiciário”.

Papen gostaria de coroar seu governo autoritário com a participação dos nazistas, mas com os resultados eleitorais que transformaram o NSDAP no maior partido do Reich, Hitler queria o governo. Schleicher concordava com essa mudança de planos e tentou influenciar Hindenburg, que a princípio não queria tirar Papen – Papen, por sua vez, se surpreendeu com a traição de Schleicher. Papen pretendia dissolver o parlamento mas antes disso foi esmagado em um voto de desconfiança que contou com o apoio de todos os partidos (foram 522 votos contra 42, de alguns membros do DNVP e do DVP nacional-liberal), além do próprio NSDAP.

Os nazistas aumentaram a pressão através da violência nas ruas. Eleições foram chamadas para novembro. Agosto de 1932 foi uma onda de terror, com notáveis atos de violência na Prússia Oriental, na Alta Silésia e na Schleswig-Holstein (ULRICH, 2016, p. 278), onde ocorreram ataques contra comunistas, social-democratas, jornais de esquerda e lojas judaicas; “propaganda incessante e violência”, “o humor da SA piorava”, bem exemplificado pelo espancamento de um social-democrata idoso em uma pequena cidade (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 79) ou o notório caso de Potempa, em que cinco camisas pardas invadiram o apartamento do mineiro comunista Konrad Pietrzuch e o espancaram até a morte na frente da sua mãe (ULRICH, 2016, p. 279). Em agosto de 1932, as SA tinham 450 mil membros.

Se ampliava o antagonismo da classe média contra os social-democratas; a propaganda da direita nacional falava de que “em breve” ocorreria uma “guerra civil contra os bolcheviques” (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 71). A crise afetando uma classe média que teve pequenos negócios falidos mas não tinha as associações de solidariedade do SPD ampliou o ressentimento. A nível local, os NSDAP crescia entre camponeses pequenos e médios, em parte através da intimidação (ameaça de boicote), enquanto outros forçavam seus trabalhadores contratados a contribuir com os esforços nazistas (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 76).

Nas novas eleições, o SPD perdeu mais cadeiras e os comunistas chegaram em 100 deputados. Os nazistas, entretanto, perderam 34 cadeiras enquanto os nacional-conservadores recuperaram parte dos seus votos. Papen estava confiante que seguiria no governo e queria uma extensão dos poderes de emergência decretando lei marcial em todo país, mas foi sabotado por uma intriga de Schleicher que expôs que isso seria impossível e que o Estado correria perigo.

Papen caiu, assumiu o próprio general Schleicher. Como Papen, Schleicher tentou mobilizar o apoio dos nazistas convidando-os para seu gabinete, sem sucesso; por um momento tentou se aproveitar de divisões entre os nazistas e flertou com os social-democratas, também sem sucesso. Papen foi orientado por Hindenburg a começar negociações com Hitler, à revelia de Schleicher – o general, por sua vez, esperava que Papen voltaria ao governo então achou que seria uma boa ideia fazer política para que Hitler assumisse a chancelaria. Hitler teve dois inimigos calculando em prol de colocá-lo no governo. Schleicher e outros generais também antecipavam que um governo chefiado por Papen resultaria numa guerra civil e os militares prefeririam Hitler (WHEELER-BENNET, 1953, p. 279); Papen, o general Hammerstein e Schleicher seguiam a lógica de que era necessário até mesmo usar pressão militar para colocar Hitler no poder para que os nazistas não se revoltassem e seu líder pudesse ser controlado (WHEELER-BENNET, 1953, p. 284).

Hindenburg não estendeu os poderes de emergência desejados pelo general-chanceler; para piorar, se espalhava o boato de que Schleicher tentaria um golpe militar. Hindenburg nomeou, de forma irregular, um novo ministro da defesa para o gabinete, Werner von Blomberg, que era o maior inimigo de Schleicher no Exército. Blomberg começou a purgar comandantes militares ligados ao até então chanceler. Além disso, o novo ministro já era um crente do nazismo, um homem que no passado buscava uma ditadura capaz de preparar a Alemanha para uma nova guerra total.

A conquista do poder

O ano novo de 1933 começou com muita violência política (TURNER, 2003, p. 79), mas atingiria patamares ainda maiores nos meses seguintes. No dia 22 de janeiro a policia ocupou a sede do Partido Comunista na Biilowplatz, em um bairro operário; mais tarde chegaram colunas de 15 mil camisas pardas com proteção policial. A polícia atacou os residentes que protestavam junto dos camisas pardas (TURNER, 2003, p. 109-110).

Hitler recebeu a tarefa de formar um gabinete de direita, de uma aliança do NSDAP com o DNVP de Hugenberg, que recebeu a pasta de economia, e Papen, que saiu do partido Centro para ficar na posição de vice-chanceler. Na primeira reunião do gabinete de Hitler, von Papen propôs um estado de exceção e o “fim do parlamento”; que as “próximas eleições fossem as últimas” (MCELLIGOTT, 2009, p. 44). Hugenberg era contra novas eleições e exigia medidas como a proibição do Partido Comunista e a cassação dos mandatos comunistas, o que garantiria a maioria parlamentar para a direita. Hitler não achava oportuno começar com a repressão brutal contra os comunistas porque eles tinham muito apoio (“impossível proibir as 6 milhões de pessoas que apoiam o KPD”), ele temia uma greve geral ou batalhas de rua (ULRICH, 2016, p. 361).

No primeiro discurso de rádio, Hitler fez um discurso que agradou os conservadores por seu “tom moderado”, falando que “quatorze anos de marxismo arruinaram a Alemanha”, que era hora do povo alemão se recuperar com base nos valores da família e do cristianismo para buscar a paz na mundo (ULRICH, 2016, p. 362). Em contrapartida, é precisamente em sua primeira reunião com o comando militar que Hitler já expos os seus projetos belicistas para conquistar o apoio do exército no que estava por vir (ULRICH, 2016, pp. 362-364).

No plano internacional, a acomodação com o ocidente vitorioso nos anos 20 – que contemplava algum discurso democrático, influenciado sobretudo pela França – foi acompanhada pela ambição de renovar a hegemonia continental através da projeção para o leste (MCELLIGOTT, 2013, p. 74). Hitler incorporou esse discurso na sua forma mais radical, expansionista e belicista – a expansão para o leste estava no coração do seu programa, o que estava claro nos seus discursos, na comunicação com os militares e na publicação Mein Kampf. O radicalismo de Hitler só repercutiu pela existência de um consenso interior envolvendo outras forças políticas, sobretudo as nacionais-conservadoras.

Mal tendo assumido o governo, os nazistas seguem um plano de realizar novas eleições, usando os mesmos métodos violentos mas agora com a máquina estatal na sua mão. Um decreto de emergência foi usada para restringir a liberdade de imprensa e reunião dos partidos de esquerda (SPD e KPD). O tom da campanha seria a “destruição do marxismo” e o NSDAP fez uma movimentação decisiva na direção dos grandes industriais, com Hitler se apresentando como defensor da propriedade particular e o único capaz de “destruir o comunismo” (ULRICH, 2016, pp. 364-366).

O nazista Hermann Göring foi instalado como ministro do interior do estado da Prússia e começou um expurgo de todos os republicanos que sobraram depois do golpe de Papen, depondo superintendentes de polícia, governadores de província e presidentes de distrito. A polícia foi orientada a apoiar a “propaganda nacional” e a usar poder de fogo contra a oposição; para completar, as SA e a SS foram transformados em “polícia auxiliar para combater os excessos da esquerda radical” (ULRICH, 2016, pp. 366-367). Os nazis começaram a espalhar o medo de um levantamento comunista, a repressão já tinha começado contra as sedes do partido e foi nesse contexto que ocorreu famoso incêndio do Reichstag no dia 27 de fevereiro.

Aqui a história é mais conhecida como um processo de usurpação, já que o decreto de emergência nesse caso serviu de base para todo o regime nazista. Efetivamente, o que se iniciou foi uma campanha para exterminar o Partido Comunista. Mesmo com essa campanha, os deputados do SPD e do Partido Comunista fizeram 18,3% e 12,3% dos votos, respectivamente. No mesmo momento em que crescia a violência e o terrorismo articulado pelas SA junta da polícia controlada por Göring, a direita emprestou legitimidade para os nazistas em uma “lista nacional” que incluía os liberais do DVP, os nacional-conservadores e a nível local diversas associações de empresários e da classe média (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 165).

Depois do dia das eleições o terror só intensificou – prefeituras foram ocupadas e sedes do SPD foram atacadas; políticos foram sequestrados e torturados no início de março; as SA espalhavam uma violência descontrolada (ULRICH, 2016, pp. 374-375). Os nazistas em março de 1933 avançaram como uma avalanche: no dia 11, a bandeira com a suástica foi decretada como símbolo estatal, no dia 20, Himmler (no controle da polícia da Baviera) anunciou a criação do campo de concentração em Dachau – oque foi exposto em jornais (SHERIDAN ALLEN, 1984, p. 187) – e no dia 23 foi votada a lei plenipotenciária.

A lei plenipotenciária foi o próximo passo no estabelecimento da ditadura: ela teria uma duração de quatro anos e permitia a criação de leis pelo chanceler sem aprovação do parlamento ou do presidente. Quaisquer leis poderiam ser criadas, inclusive em contradição com a constituição de Weimar – alterações no texto constitucional demandavam dois terços dos votos no parlamento, o que os nazistas buscaram aqui pela última vez. Mesmo depois do que fizeram nas eleições, a coalizão da direita NSDAP-DNVP não tinha os dois terços dos votos para aprovarem o texto.

Como resolveram o problema dos votos? Nenhum dos 81 deputados do Partido Comunista pode participar da sessão; 26 deputados social-democratas foram impedidos de entrar no teatro onde se realizou a sessão, sendo presos na sua chegada. Os que entraram no local estavam cercados por uma multidão de camisas pardas e pessoas vestidas de preto que os hostilizavam e exigiam poderes plenos para o governo. Dentro do recinto, o local onde os deputados do SPD se sentaram estava cercado por mais uma tropa de camisas pardas. Os membros do partido foram impedidos de discutir a lei, o que pode ocorrer entre a centro-direita do partido católico. Reaberta a sessão, o presidente do SPD Otto Wells fez um discurso desesperado dizendo que nenhuma lei plenipotenciária poderia matar as ideias – saiu da tribuna vaiado e foi respondido por um Adolf Hitler triunfante, que declarou que se os nazistas não quisessem eles não precisariam sequer votar a lei e podiam tomá-la com as próprias mãos.

A lei foi aprovada por uma votação esmagadora de 444 contra 94 – somente os social-democratas votaram contra, os liberais votaram junto de Hitler e emprestaram alguma legitimidade internacional aos atos que se seguiriam. No final de março se iniciaram os preparativos para a primeira campanha de ataques e boicotes contra os judeus. Em julho, é banida a reconstrução de outros partidos e o NSDAP vira partido único. No exterior, von Papen defendia que Hitler estava cumprindo a tarefa de “libertar a Alemanha do grave perigo comunista” (ULRICH, 2016, p. 394). Mais tarde, a noite das facas longas, quando o Exército pressionou Hitler para que ele controlasse as ambições de poder das SA, que em 1933 chegaram a 4 milhões de membros. Hitler também era guiado pela ambição de unificar irrevogavelmente seus poderes com os poderes presidenciais, já que Hindenburg ainda estava vivo, e para isso precisava do apoio do Exército (ULRICH, 2016, p. 400).

Generais como Blomberg, Reichnau e Keitel já haviam se tornado nazistas conictos, tratando com Hitler antes de 1933 e independentes de Schleicher, o mesmo que havia desmoralizado definitivamente a instituição do ministério da defesa (WHEELER-BENNET, 1953, p. 245). Em 1934, Hitler se posicionou contra Rohm, seu velho camarada e chefe das SA, e os militares começam a compilar dossiês contra os líderes das SA. Ao mesmo tempo, Hitler usou a oportunidade para eliminar um grupo de conservadores descontentes que se reuniam ao redor de von Papen. O ataque foi no dia 30 de junho de 1934: os líderes das SA, alguns líderes católicos, o intelectual Edgar Julius Jung, o velho adversário de Hitler von Kahr e, muito importante, o general von Schleicher, sua esposa e um general que era seu aliado, Ferdinando von Bredow – todos eles e mais dezenas de pessoas mortas em assassinatos que parecem execuções criminosas, informais (o casal Schleicher foi morto atendendo a porta de casa). Schleicher ainda tinha ambições de usar suas velhas ligações com as SA para montar um novo gabinete com Rohm, nominalmente liderado por Hitler como chanceler.

O general von Blomberg, ministro do exército, agradeceu Hitler por sua ação decidida em nome dos seus colegas ministros; o general Walter von Reichnau aprovou o assassinato de Schleicher pois este “teria trazido isso para si” (MCELLIGOTT, 2013, p. 239) – Reichnau estava envolvido na conspiração para o assassinato. A “Noite das Facas Longas”, como o episódio ficou conhecido, é geralmente considerado a primeira ruptura total dos nazistas com qualquer aparência de legalidade.

É certo que existia pelo menos uma facção entusiasmada dos militares que viram no naziso um veículo para suas ideias (WHEELER-BENNET, 1953, p. 294). Além do apoio, é comum a tese plausível de que os militares acreditavam poder controlar Hitler – como pensaram os políticos conservadores mas, em tese, depois da Noite das Facas Longas só restavam os militares ao lado de Hitler na alta política (WHEELER-BENNET, 1953, p. 293). Em 1938, Hitler concentraria os poderes de comandante das forças armadas depois que Blomberg foi obrigado a renunciar como ministro da guerra, por chantagens envolvendo a vida pregressa de sua esposa, enquanto o comandante-em-chefe Werner von Fritsch – que tinha sido levantado ao cargo por Hitler em 1934 – foi acusado falsamente de ser um homossexual (a homossexualidade conhecida de Rohm também havia servido como justificativa para seu assassinato). Escritos de Fritsch mostram que ele também era um apoiador convicto de Adolf Hitler, louvando-o por sua “vitória contra a classe trabalhadora” e pela luta contínua contra “os judeus e a Igreja Católica”.

Para além do discurso de Wells, houve resistência? No domingo do dia 29 de janeiro de 1933, 100 mil trabalhadores se manifestaram no centro de Berlim contra a nomeação de Hitler chanceler e um dos líderes inclusive pretendia se articular com um setor do exército para a realização de uma greve geral contra os nazistas (SHIRER, 2011, p. 3) – pretensão ingênua e desalinhada com humor dominante entre os generais. Entretanto, nos diversos estudos clássicos sobre a ascensão do nazismo (como os citados aqui) vemos vários fatores que levaram as direções políticas a não resistir: os liberais mais preocupados com Hitler eram incrédulos na sua capacidade, os conservadores pensavam em controlá-lo e o SPD também desarmou a resistência para “esperar e ver”. No curto período entre o incêndio do Reichstag e a votação do dia 10 de março, existiam chefes de polícia social-democratas que cumpriram as ordens de prisão contra os comunistas, talvez sem imaginar que seriam os próximos. A confederação de sindicatos ADGB, historicamente ligada ao SPD, se afastou da direção política em nome do “pragmatismo” e do diálogo com o governo, fazendo acenos bem claros de colaboração em março – em maio os nazistas tomaram os sindicatos militarmente e extinguiram a ADGB.

Os social-democratas hesitaram em resistir de forma organizada, frustrando os quadros do Reichsbanner. Os registros locais do SPD no distrito de Hanover, por exemplo, não mostram urgência em relação à lei de emergência ou a lei plenipotenciária no dia 23 de março- e eles foram espancados e presos isolados, normalmente em suas casas, mesmo que tivessem condição organizacional de opor alguma resistência (SHERIDAN ALLEN, 1984, pp. 192-193). A falta de resistência ao golpe de Papen contra o estado da Prússia em 1932, onde o SPD preferiu desarmar qualquer tentativa de greve e recorrer ao Tribunal Constitucional, também tinha sido um bom indicativo para Hitler (o Tribunal Constitucional deu uma decisão contraditória que reconhecia a intervenção como fato consumado e a nomeação de um interventor legal, apesar de considerar a dissolução do governo estadual ilegal, o que não trouxe consequências). Cabe lembrar ainda que em maio de 1933, violentados, ainda assim houve deputados que votaram favoráveis ao governo na questão do desarmamento do país (talvez para mostrar “patriotismo”).

Conclusão: a tomada do poder fez parte de uma totalidade ideológica e funcional

Esses acontecimentos mostram a dinâmica viva da situação, que depõe contra clichês que retratam a usurpação como um acontecimento repentino em que ou os nazistas tomaram a Alemanha de surpresa como criminosos no meio da noite, ou os nazistas foram recebidos de braços abertos por uma Alemanha hipnotizada por uma grande unanimidade. Fala-se muito de “lições históricas”, mas as lições reais estão no processo político.

As medidas autoritárias de Papen – lei marcial, deposição do governo da Prússia – prepararam o caminho para a tomada do poder pelos nazistas quase que de imediato. McElligott (2013, p. 16) argumenta que a lei plenipotenciária não deveria ser vista como a “rendição da República de Weimar” mas como a “conclusão lógica da prática e de debates que vão até os anos da guerra e foram refeitos durante os anos 20” e demonstração de que “as elites políticas de Weimar e a liderança Nazi eram muitos mais próximas do que como é por vezes retratado”.

Ulrich caracteriza a tomada do poder em 1933 como “a união das elites sociais tradicionais ao exército, à grande indústria, à grande agropecuária e à área burocrática com o movimento de massas nazista e seu líder” (ULRICH, 2016, p. 394).

Um constitucionalismo mais rígido refletiria as estruturas mais conservadoras da sociedade, ao mesmo tempo que existiam setores que buscavam ativamente mudanças na sociedade. Os nazistas tiveram sucesso por navegar melhor a disputa pela exceção e no espaço dos setores da sociedade capazes de oferecer força para a ação excepcional (sobretudo o exército, que enquanto instituição não foi transformada pela revolução republicana).

Como vimos, os nazistas em sua ascensão usaram métodos violentos, atacando comunistas com a tolerância ou apoio da polícia, mas isso não foi fortuito: nem os ataques contra comunistas, nem a tolerância policial. A Alemanha vivia contradições sociais agudas, o radicalismo de esquerda correspondia aos setores mais revoltados da classe operária enquanto do outro lado existiam os industriais preocupados com a ameaça comunista e elementos do velho estado imperial que não aceitavam o sistema republicano, nem se conformavam com a multiplicação de tendências democráticas; simultaneamente, social-democratas tentavam afastar as castas tradicionais do exercício do poder republicano ao mesmo tempo que cooptavam a violência dessas castas contra o movimento operário.

O uso frequente do estado de emergência corresponde principalmente à essas três dinâmicas: a repressão de revoltas operárias, tentativas de estabilização republicana (pelos social-democratas) e tentativas de estabilização reacionária (pelos militares).

Os nazistas crescem como movimento politico inseridos nesse contexto, sustentando um programa de defesa da ordem que garantiu sua posição dentro da frente das forças mais conservadoras. Nessa frente a capacidade de empreender violência é funcional e a ideologia faz parte de uma estrutura; reprimindo qualquer tendência no seu movimento que fosse além na crítica populista ao sistema econômico, Hitler garantiu que o NSDAP não se isolasse das forças sociais conservadoras. Sem sua violência de rua não teriam conquistado a nomeação legal para a chancelaria e nem tão pouco a sociedade estaria preparada para a violência da ditadura.

Sim, existiram indivíduos de ideologia conservadora que foram contra o nazismo e o nazismo teve características ideológicas próprias que o destacam do restante por seu fanatismo racial e social-darwinista, mas a ascensão nazista se dá primeiro por seu sucesso dentro de uma frente conservadora, como aqueles mais comprometidos em combater os comunistas e os reformistas sociais – cresceram atendendo uma demanda política do conflito social, que a ideologia nazi projeta no nível geopolítico com ideias de expansão para o leste. Sem essa correspondência com ideias e conflitos que já existiam, não haveria apoio do exército e nem sustentação para as medidas de emergência que inauguraram a ditadura de Hitler.

Em suma, o elemento legal da tomada de poder é indissociável de seus elementos ilegais, que por sua vez cumprem um papel funcional e ideológico dentro daquele momento histórico.

Resumindo:
1. de 1919 até 1934, a ascensão de Hitler é indissociável da ação dos militares.
2. o uso de mecanismos de emergência por Hitler tem uma lista de precedentes na República de Weimar, marcada pela excepcionalidade e o protagonismo militar na aplicação dessas medidas.
3. o uso da violência pelos nazistas aumentou o seu perfil entre as forças conservadoras e reacionárias, servindo a uma propósito de combater os comunistas.


Fontes

EVANS, Richard J. The Coming of the Third Reich. Nova Iorque: Penguin Books, 2005.

HEIDEN, Konrad. A History of National Socialism. Londres: Routledge, 2010.

MCELLIGOTT, Anthony. Rethinking the Weimar Republic – Authority and Authoritarianism, 1916–1936. Londres: Bloomsbury Academic, 2013.
——————-. Weimar Germany. Nova Iorque: Oxford University Press, 2009.

SHERIDAN ALLEN, William. The Nazi Seizure of Power: The Experience of a Single German Town 1922-1945. Nova Iorque: Franklin Watts, 1984.

SHIRER, William Lawrence. The Rise and Fall of the Third Reich. Nova Iorque: Rosetta Books, 2011.

TURNER, Henry Ashby. Hitler’s Thirty Days to Power: January 1933. Nova Iorque: Book Sales/Castle Books, 2003.

ULRICH, Volker. Adolf Hitler – Volume 1: Os anos de ascensão. São Paulo: Amarilys, 2016.

WHEELER-BENNET, John. The Nemesis of Power – The German Army in Politics 1918-1945. Londres: Palgrave Macmillian, 1953.

MUHLE, Alexander e SCRIBA, Arnulf. Otto Geßler 1875-1955. Berlim: Deutsches Historisches Museum. Link: https://www.dhm.de/lemo/biografie/otto-gessler último acesso: 24/03/2023



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