Em fevereiro de 2022, a Federação Russa iniciou uma operação militar oficial e de larga escala contra o Estado ucraniano. O embate foi mais uma culminação de um confronto internacional entre a Rússia e os Estados Unidos, sobre um contexto de um conflito regional histórico. A Rússia faz reivindicações de segurança perante a postura da OTAN em suas fronteiras, o confronto interno na Ucrânia e ascensão de grupos neonazistas; os Estados Unidos se apresentam como protetores da ordem internacional contra a agressão de um regime revisionista autoritário, protegendo um estado ucraniano cujo governo mistura reivindicações de europeização com pautas nacionalistas.

Esse confronto é uma perturbação radical da correlação de forças no tabuleiro internacional, colocando em xeque a hegemonia dos Estados Unidos e seu enquadramento normativo baseado nas ideias de globalização e fim da história.

O que se esperava do Brasil nesse contexto? Neutralidade. Se não neutralidade, um gestual voltado para a neutralidade. Essa palavra é associada com uma tradição diplomática do Brasil ou, colocando de forma mais adequada, podemos dizer que compõe a expectativa de diferentes tendências que já apareceram na nossa diplomacia.

Com a ascensão de Lula ao seu terceiro mandato como presidente, essa expectativa era ainda maior por se esperar que esse governo tivesse como objetivo um pouco mais de independência em relação aos Estados Unidos e a priorização das relações no interior do BRICS (Brasil – Rússia – Índia – África do Sul). Além disso, se contava com alguma influência de posições tradicionais no interior do Partido dos Trabalhadores, com distintos graus de oposição à hegemonia dos Estados Unidos. Os mais entusiasmados projetavam a ilusão de uma política radicalmente independente, imaginando o BRICS como um bloco consolidado de oposição ao bloco do Atlântico Norte.

No governo de Jair Bolsonaro, houve uma tendência que buscava uma mudança radical na nossa política externa para buscar laços mais profundos com os Estados Unidos, como o caminho para a preservação de valores ocidentais contra o que seriam reedições da ameaça comunista. O chanceler Ernesto Araújo tinha uma visão da Rússia como criminosa, comunista e até anticristã. O sucessor de Araújo, Carlos França, era mais moderado e optou por declarações de neutralidade (Araújo foi crítico da postura do governo Bolsonaro em relação à guerra). 

Ainda pensando em termos de antecedentes, o governo do PT sob a liderança de Dilma Rousseff já havia se posicionado com uma recusa em participar de um coro internacional liderado pelo Ocidente condenando a Rússia. Em 2014 Dilma disse no G20 que o Brasil não tinha posição. O Brasil se recusou a condenar a Rússia no episódio que culminou na unificação da Criméia com a Federação Russa.

As atitudes tomadas no início do governo Lula, entretanto, destoam desse antecedente e dessas expectativas. No dia 10 de fevereiro, no contexto da visita de Lula a Washington, o chanceler Mauro Vieira declarou na Revista Veja que o Brasil havia “saído de cima do muro” e que “condena a invasão russa”. Também observou que os Estados Unidos “foram nosso maior parceiro por um século inteiro, até 2010”.

No mesmo dia, Lula e Biden emitiram uma declaração conjunta que diz: “eles lamentaram a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes de seu território como violações flagrantes do direito internacional”. O teor geral da declaração também reforçava o atual discurso da Casa Branca de “promoção internacional da democracia”.

No dia 23 de fevereiro, uma sessão especial de emergência da Assembleia Geral da ONU votou uma resolução não-vinculante que “reitera a demanda de que a Federação Russa imediatamente, completamente e incondicionalmente retire todas suas forças militares do território da Ucrânia dentro de suas fronteiras reconhecidas internacionalmente” e “reafirma seu compromisso” com a integridade territorial da Ucrânia. A maioria votou a favor, incluindo o Brasil, sete votaram contra (Belarus, República Popular Democrática da Coreia, Eritréia, Mali, Nicarágua, Rússia e Síria) e ocorreram 32 abstenções. As abstenções que mais receberam atenção internacional foram de duas potências: Índia e China. A China vem fazendo uma proposta de “paz e cessação das hostilidades” em termos diferenciados, além de declarações que enfatizam a agressividade internacional dos Estados Unidos nas últimas décadas.

Tirando a Rússia que é parte interessada, Índia, China e África do Sul optaram pela abstenção. Isto é, o Brasil não votou junto com o BRICS. É importante ressaltar que a África do Sul declara neutralidade na questão ucraniana, mas iniciou no dia 23 de fevereiro exercícios militares navais em conjunto com a China e com a Rússia. O Brasil então se destacou como um país que reforça a posição ocidental sobre o conflito em um momento em que os grandes países não-ocidentais expressam posições distintas.

Ano passado, no dia 2 de março foi votada uma resolução similar e que também foi apoiada pelo governo brasileiro, naquele momento chefiado por Jair Bolsonaro. No dia 24 de março de 2022 a África do Sul foi responsável por uma resolução alternativa que tratava da questão humanitária na Ucrânia sem citar a Rússia. A resolução que venceu foi outra, que condenava a Rússia – nesta, a África do Sul, a China e a Índia se abstiveram, mas o Brasil de Bolsonaro votou favorável. 


Essas votações por si só não refletem necessariamente alinhamentos políticos absolutos, existem nuances expostas nas contradições: em abril de 2022 foi votada uma expulsão da Rússia da Comissão de Direitos Humanos, onde o Brasil e o México, até então favoráveis as resoluções condenando a Rússia, optaram pela abstenção. É importante observar o comportamento do México nesse caso: os mexicanos explicaram que optaram pela abstenção por considerar que a resolução era tão equivocada em seus princípios que não deveria ser votada, então a abstenção era um rechaço e não uma neutralidade.

Esses gestos na política internacional se inserem em um continuum, por si só eles apontam tendências ou direções, mas mudanças normalmente ocorrem por acúmulo ou em gestos mais decisivos. Esses gestos recentes do Brasil, considerados isoladamente, constituem um alinhamento com a política dos Estados Unidos.

Muitos que esperavam uma política orientada pela diferenciação e pelo fortalecimento do BRICS ficaram frustrados. Essa frustração se manifestou na própria base petista, apesar de alguns defenderem a atitude argumentando que países como Colômbia, Argentina e Sérvia votaram favoráveis. Esses países importam nessa consideração? O BRICS é uma referência maior: nós fomos o país que votou com os Estados Unidos, coisa que nem a Índia, nem a China e nem a África do Sul fizeram. Países grandes, que têm um papel decisivo no futuro do mundo por sua dimensão, economia e população. Países que estão em um suposto “bloco” com o Brasil e que com frequência são exaltados por comentários alinhados ao petismo.

Nesse caso, o que adianta nos comparar com a Sérvia? “Ah, a Sérvia não gosta da OTAN e mesmo assim votou junto”, uma meia-verdade. A oposição à OTAN que existe na sociedade sérvia é precisamente pelo papel da Coalizão atacando a Sérvia no passado e suprimindo o potencial geopolítico desse país. Essa Sérvia é uma Sérvia mutilada, cujo governo patinou em uma política multivetorial de flerte e rejeição com a OTAN. Para piorar, a Sérvia está nesse momento lidando com ameaças de guerra nos Balcãs. Se a Sérvia votou com os Estados Unidos, pior para eles.

É verdade que esses votos são vistos como gestos baratos porque têm pouca consequência e efeito práticos, e o núcleo da liderança ocidental, seus apologistas e a direção política ucraniana apontam isso exigindo ações mais consequentes e questionando a honestidade de alguns apenas votam para condenar. Isso foi feito com o Brasil na questão do envio de armas e munições, mas é notável que os Estados Unidos colocaram panos quentes nessa diferença. A Hungria votou agora e no ano passado condenando a invasão, mas Viktor Orbán continua fazendo oposição vocal às sanções. Os Emirados Árabes Unidos também votaram contra a Rússia porém assumiram uma posição moderada no discurso (“não assumir posições”) e nessa semana mesmo a Rússia participa de uma grande feira de venda de armamentos em Abu Dhabi, ocidentais aplicam novas sanções a um banco russo (MTS) que recentemente ganhou licença para operar no país e AP reportou no início de fevereiro uma onda de dinheiro russo em Dubai. Contra a impressão do “isolamento russo” por conta da votação na ONU, o The New York Times publicou que o Ocidente tentou isolar a Rússia mas não funcionou; o presidente dos Emirados, o Príncipe Mohammed Bin Zayed, visitou Moscou ano passado para se encontrar com Putin e falou de mediar negociações de paz. 

Votar sim para essa resolução é uma posição fácil e segura para a maioria dos países: afirmam que não concordam com uma guerra sem aprovação do conselho de segurança e que continuam comprometidos com o princípio de integridade territorial, com os princípios da carta da ONU. Afinal, a Rússia que fez a aposta alta, resta para os outros optar pelo convencional enquanto os EUA e a Europa conseguem sustentar isso como uma pauta forte. Votar contra é muito radical e se abster tende a significar alguma alternativa. 

O Brasil é um dos candidatos naturais para propor essa alternativa. O voto pode ter pouco efeito prático, mas é simbólico e a política internacional também se constrói através da projeção de valores.

Em artigo para a Bloomberg reproduzido na revista Time, Simone Iglesias disse que “os esforços de Lula para colocar Brasil como um mediador pragmático podem ainda estar feridos pelos comentários que ele fez ano passado” dizendo que parte da culpa pelo conflito estava com Zelensky, a União Europeia e com os Estados Unidos. Pode ocorrer nesse momento uma tentativa de ganhar crédito com o lado “ferido”, lembrando que o chanceler declarou (também na entrevista com a Veja) que é o momento de “reparar” as relações com os Estados Unidos.

Com sua liderança individual, Lula pode conferir alguma ambiguidade ao posicionamento do Brasil. Além da entrevista realizada com a Time ano passado,  na conferência de imprensa com Olaf Scholz da Alemanha Lula cobrou maior clareza sobre as origens da guerra, que o “mundo tem poucas informações” e que para ocorrerem negociações os dois lados precisam ceder. 

Essas posições contrariam a tônica do discurso ocidental hoje, que diz que negociar é do interesse dos russos e que é preciso armar os ucranianos antes de fazer isso. Nesse sentido, podemos postular a hipótese de que o Brasil tenha buscado crédito junto aos ocidentais condenando a Rússia ao mesmo tempo que vai cumprir um papel disruptivo na sinfonia global anti-russa e que não reconhece qualquer reivindicação dos russos. Na última semana o discurso concertado de que a Ucrânia pode iniciar uma ofensiva para retomar a Crimeia tem o efeito sobretudo de uma operação de influência na opinião pública mundial – a mensagem de que nem a Crimeia que os russos já tinham anexado de fato será poupada, os ucranianos vão tomar tudo e conquistar uma grande vitória militar, a mensagem de que o momento é de combate.

O Brasil vem mostrando alguma proatividade com a proposta de um processo de paz. Nessa semana, os russos se manifestaram positivamente sobre isso. O chanceler russo Sergey Lavrov também manifestou otimismo na disposição de Lula “ouvir as razões da Rússia”. Se o Brasil usar o trampolim internacional para pressionar uma proposta de paz mais ou menos como a Rússia já havia colocado, o papel brasileiro junto da frente ocidental não será só disruptivo, mas subversivo.  Isso provavelmente aconteceria como a concretização de um dos pesadelos dos que defendem a guerra contra a Rússia: que países como Brasil e Indonésia, que votaram a favor da condenação, sejam na prática facilitadores de reivindicações russas em uma cúpula de negociações. Mesmo sem sucesso, o Brasil dando voz para a ideia de negociações que consideram interesses russos no mínimo vai atrapalhar a narrativa ocidental. 

Se o Brasil, a Índia, a China, a África do Sul, a Indonésia, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita ou qualquer país assumir que a prioridade é desescalar o conflito e cessar operações militares, estará em contradição com o princípio de que a Rússia deve realizar uma retirada incondicional. Para manter um suposto compromisso com a “integridade territorial da Ucrânia” basta não reconhecer as anexações enquanto mantém relações normais e aceitem um acordo de cessar-fogo que tolere a permanência de tropas russas em prol da prioridade de interrupção dos combates. Tanto China e Índia (abstenção), como Turquia e Emirados Árabes (voto a favor da resolução), tiveram benefícios econômicos com a Rússia sancionada pelo Ocidente.

Em negociações, é comum elevar as exigências e é inteligente ceder onde menos importa para preservar o que é mais importante. A Rússia declarou que seu objetivo era a desmilitarização e a desnazificação da Ucrânia, o que soa bem geral, mas o fato é que ela conseguiu estabelecer uma boa posição militar em Donetsk e Lugansk, as províncias reivindicadas pela repúblicas separatistas. Enquanto isso, a reivindicação ucraniana está baseada na retomada desses territórios: aceitar que eles continuem fora do domínio ucraniano em nome da paz ou de um cessar-fogo será um fracasso.  Por isso os setores mais pro-ucranianos do Ocidente e as tendências mais nacionalistas da Ucrânia batem o tambor da guerra com tanta frequência.

Olaf Scholz bate nas tendências de sua política interna que se inclinam por negociações de paz com a Rússia, por isso ele também não poderia aceitar que Lula representasse o mesmo raciocínio em seu discurso sobre a questão ucraniana. Existe uma tendência no mundo que acredita que a paz é uma prioridade maior do que as reivindicações de Zelensky, pois dentre outras coisas temem uma escalada global do conflito. Até agora, Lula já declarou na entrevista da Time que se o problema que causa a guerra é a Ucrânia entrar na OTAN, então deveria ficar firmado que a Ucrânia não pode entrar na OTAN: a mesma posição da Rússia, vide as negociações do Protocolo de Minsk que previam a Ucrânia como zona neutra.

No rol do gestual neutro, o representante do Brasil no Conselho de Segurança não se levantou quando o representante ucraniano pediu para que os presentes respeitassem “um minuto de silêncio às vítimas da agressão russa”; os chineses fizeram o mesmo. Em seguida, o representante russo pediu o mesmo por “todas as vítimas do que ocorreu na Ucrânia, começando em 2014”, onde todos se levantaram.

Não obstante essa alternativa de “jogo duplo” brasileiro, existem outras opções em aberto, tendências em disputa. Pode existir a visão de que a Rússia está atuando como um arruaceiro de uma ordem internacional cujo progresso natural seria a cooperação e o mercado, que de fato é preciso “punir” sua tendência revisionista mesmo que sem ser em uma perspectiva de exclusão. Por exemplo, a professora Flávia Bellieni Zimmermann escreveu uma análise que parte do princípio de que o mundo está se polarizando entre democracias e autocracias, criticando a relutância em condenar a “agressão russa” e conclamando Lula, “um ícone da democracia e da proteção dos direitos humanos”, a “reequilibrar o seu projeto geoestratégico” e conclamando para uma postura mais dura contra a Rússia. 

Lula pode ser usado como interlocutor preferencial pelos Estados Unidos e servir à manobra kissingeriana de isolar a Rússia usando a China. Os Estados Unidos junto da Alemanha podem estar tentando seduzir o Brasil com a desejada cadeira permanente no Conselho de Segurança. O governo pode estar preocupado com uma derrota militar russa ou com sofrer efeitos negativos de abusos cometidos durante a guerra. Ouvindo mais assessores educados e que se alimentam (e contribuem) de revistas como Foreign Affairs e Foreign Policy, o governo pode recear mais uma derrota russa do que se ouvisse os círculos militares.

O fato é que não existe negociação nos termos da resolução votada pela assembleia extraordinária da ONU. A solução pacífica do conflito implica em reconhecer alguma demanda russa e exigir negociações, não a exigência da “retirada imediata de todas as tropas”. A defesa desse voto nos termos de um ideal liberal e legalista das relações internacionais só expõe as fragilidades desse ideal, caso o governo opte por uma política inconsistente com essa resolução.

A situação atual reflete as limitações do atual sistema internacional, a crise é produto de uma grande assimetria e reflete sua transformação. Se considerarmos a arena internacional um sistema hierárquico que constitui uma totalidade por suas relações de poder, não podemos pensar nos atos dos Estados Unidos (diversas guerras e violações) como atos isolados de “quebra da regra”, mas um processo relevante para entender as relações dominantes nesse sistema. Quer dizer, a arena internacional não é um tabuleiro neutro onde domina a lei e em alguns momentos os atores saem da linha – na verdade a atuação dos Estados Unidos talvez fale mais sobre o sistema internacional do que os próprios paradigmas legais, que funcionam para alguns enquanto outros se acham acima deles.

A Rússia decidiu romper com o sistema, desafiando a assimetria de forma direta em uma questão que considerou como de supremo interesse nacional. Aqui entram as reivindicações russas: proteção da população russa e o problema de uma eventual adesão da Ucrânia à OTAN. No plano regional, o apoio às reivindicações nacionais e separatistas pró-russas dentro da Ucrânia, bem como o receio com o crescimento de uma ideologia extremista que reivindica a história do nacionalismo que colaborou com os nazistas nos 1930-1940.

Perante essas demandas da Rússia, não existe paz sem negociação – não existe exigir retirada incondicional ao mesmo tempo que se defende negociação de paz. Os russos podem ceder em relação a ter um governo aliado em Kiev, mas muito dificilmente vão entregar a Crimeia ou abandonar o leste ucraniano.

O Brasil quer votar guiado por princípio? A questão era simples: os russos têm motivações para iniciar a operação militar e é razoável que o Estado Ucraniano tome medidas para se defender. Pronto, neutros e a mensagem clara de que o Brasil tem voz própria, além de estar consciente da realidade do conflito ucraniano e das mudanças fáticas no sistema internacional.

“Não posso condenar a invasão dos EUA pelo Iraque e aceitar outra invasão”, disse Celso Amorim, “amanhã podem ser os EUA na Venezuela”, acrescentou.  Amorim de certa forma está submetendo sua posição a um princípio maior de que a invasão foi feita fora do direito internacional, sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, então ele não pode aceitar ao mesmo tempo que diz que as razões da Rússia são legítimas. O diplomata pode se defender de acusações de incoerência pontuando que razões legítimas não justificam meios ilegítimos, mas ainda assim esse reconhecimento das razões russas traz consigo uma tensão, uma ambiguidade. Um sistema legal-racional que não comporta reivindicações legítimas caminha para sua falência e o ator prejudicado vai buscar caminhos alternativos para fazer valer suas demandas.

A distância entre o ideal legal e a realidade pode ser vista como um sintoma da crise. Se podem fazer comparações legais com a invasão do Iraque, a realidade concreta de cada caso cria um abismo entre eles. A história da Rússia e da Ucrânia é indissociável desde o período medieval. O Iraque não faz fronteira com o Texas, o Iraque e os Estados Unidos nunca foram o mesmo país, não existe algum parentesco étnico ou cultural entre os dois países, não existia uma grande população proveniente dos Estados Unidos no Iraque, sequer alguma comunidade que crie um vínculo histórico. A fragmentação da União Soviética  e a divisão da sua população em estados nacionais, alguns deles sensíveis ao nacionalismo, já prefigurava a atual situação de guerra e revisão dos resultados de 1991.

Essa complexidade e o reconhecimento de razões legítimas do lado russo já serviria para fundamentar uma abstenção – com a abstenção diríamos que o problema é mais complicado do que a resolução faz parecer. Se partirmos somente da linha de Celso Amorim, uma visão otimista é de que o Brasil vai equilibrar sua condenação aos “métodos” da Rússia com uma visão menos punitiva em função das razões que levaram à guerra, ou seja, não aceitar proposições ucranianas e dos Estados Unidos que apontam para a mudança de regime e até a fragmentação territorial da Rússia em novos estados nacionais (o que também é contrário aos princípios da ONU reforçados na resolução do dia 23).

O papel da ONU está em questão. A intervenção na Líbia foi legal pela aprovação do Conselho de Segurança e pelos padrões dos europeus (que tentam se apresentar como mais comprometidos com o direito do que os EUA), e os efeitos práticos foram desastrosos. Quais consequências o sistema internacional impôs aos Estados Unidos por suas atuações unilaterais? Amorim diz que vinte erros de um não fazem um acerto do outro, mas como essa situação é interpretada? Como os Estados Unidos podem atuar como polícia global mas os russos não podem defender interesses nacionais em suas imediações? 

A abstenção da China é coerente com uma postura que entende as limitações do sistema internacional e que podem ter levado à guerra – ao mesmo tempo que são resistentes à revisões territoriais e cobram a responsabilidade russa por iniciar uma ação arriscada, fazem condenações ao histórico de intervencionismo dos Estados Unidos e ao papel dos ocidentais na escalada do conflito ucraniano. Os chineses apresentaram seu próprio projeto para a paz ou pelo menos um cessar-fogo como alternativa ao proposto pela resolução da ONU. Os doze pontos dos chineses não especificam a retirada de tropas russas e também condenam sanções unilaterais (que estão sendo usadas contra a Rússia). Apesar da má recepção de outras autoridades ucranianas, Zelensky mostrou alguma abertura em relação aos chineses.

No dia 24 e 25 de fevereiro também ocorreu uma reunião do G20 na Índia. A China impediu que houvesse uma declaração de consenso condenando a guerra na Ucrânia, mantendo sua posição contrária às sanções enquanto o G7 (dos países mais ricos) anuncia novas sanções contra a Rússia. A Índia tentou evitar que a guerra e as sanções fossem pauta. O Brasil acompanhou a maioria que deu o posicionamento separado. Ou seja, não podemos ver a ambiguidade do Brasil como livre de consequências, o Brasil não está cumprindo um papel que condena as medidas tomadas pelos países ocidentais.

Enquanto a Índia não aprova as resoluções contrárias à Rússia na ONU, o Primeiro-Ministro Modi vem trabalhando uma política multi-vetorial independente na questão, liderando declarações multilaterais pela paz e contra a guerra no G20 e entre países asiáticos,  manteve uma comunicação com Zelensky se apresentando como possível mediador ao mesmo tempo que intensificou suas relações comerciais com Moscou. A Índia está se aproveitando da situação para reforçar um perfil internacional próprio.

A atuação de países como a China, a Índia, a Turquia e o Brasil pode ser fundamental para que Zelensky tenha uma cortina de fumaça que justifique concessões ou para um acerto similar à posição proposta por Noam Chomsky: paz com anexações russas e reparações para a Ucrânia.

A Rússia não vai se tornar inimiga do Brasil por causa desse ato. A Turquia está preservando uma boa interlocução e relações econômicas com a Rússia ao mesmo tempo que arma os ucranianos e ajuda na pressão militar contra os russos em outras frentes (Síria e Armênia). O que guia a atitude russa para com o Brasil está acima disso, é uma questão de Estado e nosso Estado não se destrói por causa de um voto na ONU. Porém isso não torna o ato completamente supérfluo: o Brasil, referência do sul Global, não votou com a China mas decidiu condenar a Rússia na ONU junto dos Estados Unidos. Isso não dá para mudar.

Com esse gesto, não estamos nos resguardando do alinhamento indesejável com os Estados Unidos – não precisávamos condenar a Rússia para exprimir uma identidade diplomática própria. A “continuidade”  era de uma ambiguidade nesse tipo de problema envolvendo o BRICS junto da manutenção de uma boa relação com os Estados Unidos, não o patrocínio aberto dos valores da política externa dos EUA.

Não foi uma virada radical, mas um ajuste que vai se inserir em um contexto maior nos próximos anos. E como já existia uma tendência para uma neutralidade mais consistente, esse ajuste é indicativo de algo maior: ou de uma visão estratégica muito cara ao líder ou um grupo influente que coloca seu peso para o redirecionamento da política nacional. Mesmo não sendo destruidor, a direção para que ele aponta é preocupante para os que acreditam na independência do Brasil.

O Brasil precisa de uma linha consequente, mas é questionável se o padrão 2003-2010 está a altura da história. Naquele período, o Brasil serviu como facilitador para a China e para a Rússia participarem de certas instituições internacionais. Mesmo se o Brasil não está comprometido em assumir uma aliança mais próxima com os Estados Unidos por razões ideológicas (a “Internacional Democrata”) ou fatores políticos internos (relação com os militares; a adesão de alguns setores das classes dominantes ao golpismo bolsonarista ter aproximado o lulismo das multinacionais e do governo Biden), mesmo que o país esteja jogando um jogo multivetorial, ainda assim esse padrão não corresponde a uma posição política consequente com a oportunidade histórica de independência que temos na nossa frente. O oportunismo multivector é sem contra-hegemonia, é só negociação. O pensamento de uma diplomacia que acredita em alguma margem de manobra por causa de interdependência econômica – uma diplomacia que no máximo quer voltar para as expectativas globais de 2003 sem punir duramente a Rússia por seu “desvio”.

No momento de desequilíbrio entre poderes, fazer um esforço para recuperar o status quo e um ideal de globalização dos anos 2000 pode ser supérfluo, ou um alinhamento com o projeto ideológico ocidental. Naquela década se falava muito de cooperação, mas os Estados Unidos exerciam seu poder de superpotência em um mundo unipolar.

Quando Lula assumiu em 2003, o mundo era outro. A China tinha uma economia quase dez vezes menor, a Rússia estava saindo de uma guerra que quase fraturou seu território (Chechênia), enquanto os Estados Unidos faziam intervenções militares unilaterais em outros continentes. Tanto a Rússia como a China passaram a se afirmar mais a partir de 2010, com a posição de um reforçando a posição de outro.

O Brasil também pode mostrar a consciência que não estamos em 2003 reafirmando a tendência da transformação da correlação de forças ao invés de seguir o caminho de ajudar a recompor as forças do bloco ocidental.

Se for por esse caminho, o Brasil está abrindo mão de uma oportunidade histórica de se afirmar como uma potência independente em um mundo de crescente multipolaridade. Esse é o momento do Brasil afirmar seus próprios valores em uma ordem internacional em crise e transformação, ou seja, de afirmar seu lugar na história guiando essas transformações. Sem afirmar sua independência, entretanto, o Brasil pode ser preposto da reconstituição do projeto de globalização nos termos do ocidente neoliberal.

Por esse caminho existem consequências na política interna: assim, não adianta reclamar da autonomia do Banco Central e da comunidade intelectual que controla essa instituição. Alinhamento e dependência dos Estados Unidos vai na direção oposta de romper com o neoliberalismo na economia.

Tivemos uma pequena oportunidade de não endossar a afirmação hegemônica dos Estados Unidos, mas ela foi desperdiçada. Se o governo está seguindo o conselho de um desses Pedros que são apóstolos de uma coalizão democrática liderada pelos Estados Unidos, os próximos quatro anos serão uma oportunidade perdida.


Fontes:

https://www.youtube.com/watch?v=5rYWjysN4Dw Como acabará o conflito entre Rússia e Ucrânia? Entrevista com Ernesto Araújo, 24/02/2022 (nota: por volta dos 30 minutos Araújo fala de globalismo e “ameaça ao Ocidente”, colocando a Rússia como parte uma “equação” que envolve narcotráfico, Foro de São Paulo e teoria de gênero, sendo a Rússia o braço militar do “mundo anti-ocidental”; em outras lives ele já deu posições similares; no último ano ele vem colocando o apoio à Ucrânia como algo fundamental no seu eixo de valores)

https://www.youtube.com/watch?v=5ZMkjKzxnBw Ida de Bolsonaro à Rússia gera debate entre Bernardo Kuster, Ernesto Araújo e Amanda Klein, 15/02/2022

https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/saimos-de-cima-do-muro-diz-novo-chanceler-mauro-vieira/ “Saímos de cima do muro”, diz novo chanceler Mauro Vieira sobre guerra, 10/02/2023

https://br.usembassy.gov/joint-statement-following-the-meeting-between-president-biden-and-president-lula/ Joint Statement Following the Meeting Between President Biden and President Lula, 10/02/2023

https://news.un.org/en/story/2023/02/1133847  UN General Assembly calls for immediate end to war in Ukraine, 23/02/2023

https://www.aljazeera.com/news/2022/3/3/unga-resolution-against-ukraine-invasion-full-text UN resolution against Ukraine invasion: Full text, 03/03/2023

https://news.un.org/en/story/2022/04/1115782 UN General Assembly votes to suspend Russia from the Human Rights Council, 07/04/2022

https://time.com/6222005/un-vote-russia-ukraine-allies/ A New U.N. Vote Shows Russia Isn’t as Isolated as the West May Like to Think, 13/10/2022

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/02/26/ucrania-pede-na-onu-homenagem-as-vitimas-da-agressao-e-brasil-fica-sentado.htm Ucrânia pede na ONU homenagem a ‘vítimas de agressão’ e Brasil fica sentado,  26/02/2023

https://www.internationalaffairs.org.au/australianoutlook/lulas-geostrategic-framing-in-war-times/ Lula’s Geostrategic Framing in War Times, 24/02/2023

https://apnews.com/article/russia-ukraine-zelenskyy-government-business-1753e114c499886eecc8d8bb169baeb4 Ukraine: Zelenskyy seeks more sanctions, fighting grinds on, 25/02/2023

https://apnews.com/article/russia-ukraine-united-arab-emirates-government-abu-dhabi-business-912108195180fb5edf9dfb88fd6167b9 Russia sells weapons at Abu Dhabi arms fair amid Ukraine war, 20/03/2023

https://apnews.com/article/us-department-of-the-treasury-business-united-arab-emirates-dubai-middle-east-192fbc4638f38d9334ad2508cae1eef4 Dubai boom sees Russian cash, high rents and reborn projects, 13/02/2023

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https://foreignpolicy.com/2023/02/22/ukraine-crimea-russia-take-back/ Ukraine Is Serious About Taking Back Crimea, 22/02/2023

https://veja.abril.com.br/mundo/putin-esta-avaliando-proposta-de-lula-para-paz-na-ucrania-diz-russia/ Putin está avaliando proposta de Lula para paz na Ucrânia, diz Rússia,  23/02/2023

https://sputniknewsbrasil.com.br/20230211/nao-vejo-biden-desejoso-de-lula-como-comandante-das-negociacoes-de-paz-na-ucrania-afirma-analista-27548125.html  ‘Não vejo Biden desejoso de Lula como comandante’ das negociações de paz na Ucrânia’, 11/02/2023

https://www.aljazeera.com/news/2022/3/24/un-general-assembly-demands-russia-end-ukraine-war UN General Assembly demands Russia end Ukraine war, 24/03/2022

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https://www.reuters.com/world/host-india-does-not-want-g20-discuss-more-sanctions-russia-sources-2023-02-22/ Host India doesn’t want G20 to discuss further Russia sanctions – sources, 22/02/2023

https://www.aljazeera.com/news/2023/2/25/g20-meeting-ends-without-consensus-over-russias-war-in-ukraine G20 meeting ends without consensus over Russia’s war in Ukraine, 25/02/2023

https://www.outlookindia.com/national/g20-bali-declaration-adopts-pm-modi-message-on-ukraine-says-today-era-must-not-be-of-war-news-237793 G-20 Bali Declaration Adopts PM Modi’s Message On Ukraine, Says ‘Today’s Era Must Not Be Of War’, 16/11/2022

Img Onu Brasil Ucrania
O Brasil depois da votação na ONU

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