Romeu e Julieta na sacada, Julius Fronberg

Por Ernst Bloch

– O almejar e o desejar em estado puro, não satisfeito

Do mero interior, algo procura vir a tona. O urgente se exterioriza primeiramente como almejar. Se o almejar é sentido, então passa a ser um ansiar, a única condição sincera de todos os ser humanos. O próprio ato de ansiar não é menos vago e genérico do que a urgência, mas ao menos é direcionado claramente para fora de si, não fica revolvendo as coisas como a urgência, vagueia solto.  Todavia , é por excelência igualmente irrequieto, ávido. Porém, caso o ansiar venha a se fixar em si mesmo, ele se reduz a uma mera avidez genérica que, vagueando cega e vazia, nem mesmo consegue se dirigir ao lugar onde poderia ser saciada.

Para tanto, o anseio deve primeiro rumar claramente em direção a algo. Estando assim determinado, ele para de dar golpes para todos os lados ao mesmo tempo: tornar-se um buscar [Suchen] que tem e não tem que o que busca, uma ação direcionada para um alvo. O seu rumar-para divide-se desde sempre conforme aquilo para o que está direcionado. Tornar-se, portanto, esta ou aquela pulsão [Triebe] que pode ser individualmente denominada. Esse conceito, sem dúvida, muitas vezes embotado e coisificado de forma reacionária, tem o mesmo sentido que necessidade. Mas, como a palavra necessidade não evoca da mesma forma a atividade direcionada para um alvo, sejam mantidos a palavra e o conceito pulsão entendidos de modo não embotado. Ele busca preencher, mediante algo exterior, um vazio, algo que carece o almejar e ansiar, algo que falta. Esse algo diferenciado, compreendido como o pão ou a mulher ou o poder e assim por diante, é o que subdivide o movimento direcionado para um alvo nas suas diferentes pulsões. A partir disso, vale dizer que o almejar sentido é apenas um anseio genérico, então a pulsão sentida é o específico de uma das paixões, dos afetos. Esse algo faz com que a pulsão, uma vez tendo se saciado no seu objeto, possa se arrefecer, até cessar temporariamente, diferentemente da avidez, que continua insaciável. Portanto, o alvo para o qual se dirige a pulsão, é ao mesmo tempo, aquilo em que ela é saciada (na medida em que se encontra ao seu alcance). O animal dirige-se par ao alvo conforme lhe dita o apetite do momento, o ser humano o retrata por antecipação.

Por isso, o ser humano é capaz não só de ter apetite [begehren] mas também de desejar algo [wünschen]. O ato de desejar é mais amplo, possui mais matizes do que o apetecer, pois o desejar se expande para uma concepção em que o apetite imagina a forma do seu objeto. O apetecer é certamente muito mais antigo do que a imaginação de algo que apetece. Contudo, o apetecer passa a ser um desejar, adquire a concepção mais ou menos definida de seu objeto,  mais precisamente de algo melhor.

O anseio do desejo intensifica-se justamente com a imaginação do melhor, até da perfeição desse objeto a ser consumado. De modo que pode ser dito, não em relação ao apetecer, mas certamente em relação ao anseio do desejo: ainda que o ato de desejar não provenha da imaginação, é só com ela que ele vem a tona. Simultaneamente, ele ainda é estimulado por ela na mesma proporção daquilo que está sendo imaginado, pintado diante dos olhos, promete satisfação. Portanto, onde houver a imaginação de algo melhor, no fundo de algo certamente perfeito, aí ocorre o desejar e, conforme o caso, trata-se de um desejar impaciente, exigente. Assim, a mera imaginação se torna um ideal,  que se mostra provido da etiqueta ASSIM DEVERIA SER. Porém, por mais intenso que seja, nesse ponto o desejar se diferencia do querer propriamente dito por seu modo passivo, ainda parecido com o ansiar. No desejar ainda não há nada de trabalho ou atividade. Em contrapartida, todo querer é um querer-fazer.

Pode-se desejar que amanhã faça bom tempo, embora em absolutamente nada possa se contribuir para isso. Desejos podem até ser completamente irracionais, podem se dar no sentido de que X ou Y ainda estejam vivos. Eventualmente faz desejo se desejar isto, mas é absurdo querê-lo.

Por isso, o desejo permanece onde nada mais pode mudar. O arrependido deseja não ter realizado uma certa ação, mas não pode exatamente querer isso. Igualmente o desanimado, o hesitante, o muitas vezes desiludido, o fraco de vontade, todos têm desejos, até bastante intensos, sem que se movam ao querer-fazer. Além disso, pode-se desejar diversas coisas, e a escolha será um tormento, mas apenas uma delas se pode querer. Aquele que quer, ao contrário,  já estabeleceu uma preferência: sabe o que prefere, a escolha ficou para trás.

O desejar pode ser indeciso, apesar de uma bem determinada imaginação do alvo para o qual se estende. O querer, ao contrário, é necessariamente um avançar ativo rumo a esse alvo, dirige-se para fora, tem de se medir unicamente com coisas realmente dadas.

Sendo que o caminho trilhado pelo desejar, acrescido e assim solidificado pelo querer, pode até ser propriamente indesejado, ou seja, áspero ou amargo. Entretanto, em última análise, nada se pode querer além do que é desejado: o desejo interesseiro é o “modo da pulsão”, “a melodia da pulsão”, que provoca o querer, que lhe entoa o que ele deve querer. Assim, ainda que exista um desejar sem o querer, isto é, um desejar claudicante e inativo, que se esgota na imaginação ou é impossível, não há querer que não tenha sido precedido por um desejar. E o querer será tanto mais intenso quanto mais vividamente o alvo, concebido em comum com o desejar, tiver assumido a forma de um ideal. Desejos nada fazem, mas eles dão forma e retêm com especial fidelidade o que deveria ser feito. A moça que gostaria de sentir-se esplendorosa e cortejada e o homem que sonha com feitos futuros vestem a pobreza e o cotidiano como uma roupa provisória. Não é por isso que ela vai cair, mas dentro dela o ser humano se sente menos à vontade. O mero apetite e sua pulsão se atém primeiramente ao que está ao seu alcance, mas o desejar imaginativo contido neles ambiciona mais. Assim, ele se mantém insatisfeito, isto é, nada do que existe lhe basta de fato. A pulsão, como um almejar determinado, como um apetite por algo, permanece viva em tudo isso.

BLOCH, Ernst “O Princípio Esperança” Vol 1, Contraponto e edUerj, Rio de Janeiro, 2005, p. 49-51

Estrutura de parágrafos alterada.

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