É preciso ter clareza para sutilidades e contradições que existem entre os países quando falamos de dependência e imperialismo. Outro dia vi um esquerdista falando da relação do Brasil com os EUA e dizendo que “Dilma é nacionalista” – um erro comum de governistas que fingem que o país é independente apesar de relações materiais de dependência com os Estados Unidos e a forte presença do atlantismo na política brasileira. Reforçam posições pontuais cabíveis no espaço de manobra do governo (amizade com Venezuela, alguma parceria com a China, esse tipo de coisa) ao mesmo tempo que ignoram as posições alinhadas com Washington (vide as recentes votações contra sírios e iranianos na ONU, ou o tratado de cooperação militar assinado por Lula), sem contar também que as posições pontuais independentes existiram em governos anteriores, mesmo outros mais claramente pro-americanos (no caso do regime militar, ou mesmo FHC que assinou acordo com Cuba). O Brasil, por seu tamanho e certa influência, sempre foi considerado pelos norte-americanos uma “questão delicada”, um “país forte”, antes do regime militar ou mesmo depois do golpe que eles patrocinaram. A rigor, uma posição anti-imperialista e patriótica exige energia, exige uma posição consequente, coisa que Dilma Roussef não tem.

Encontramos na história contradições entre os Estados Unidos e seus fantoches. Casos notáveis são os de Mubarak no Egito e Park Chung Hee na Coreia do Sul. Ambos eram fundamentais na geoestratégia norte-americana e mesmo assim demonstravam certo nível de independência nas mais diversas questões.

Park Chung Hee não só buscou  autonomia militar num país militarmente controlado pelos Estados Unidos e perseguiu uma política externa mais independente, como iniciou todo o ambicioso projeto de desenvolvimento da economia sul coreana a despeito da orientação contrária dos conselheiros e políticos ianques (que tinham uma tendência mais liberal e aparentemente preferiam uma Coreia mais pobre e submetida).

Um outro exemplo atual que eu gostaria de colocar é o da Ucrânia: fazer a acusação política ou a constatação da Ucrânia como um instrumento norte-americano não significa que os governos destes países vão estar em concordância total a todo momento, como foi demonstrado nas suas relações e nas relações da Ucrânia com a União Europeia e com a OTAN (implorando por mais intervenção). Poderia também discutir o caso russo, onde você tem uma economia fraca na ordem imperialista mundial porém um Estado relativamente forte, com poderio militar e capacidade pra apoiar grandes empresas energéticas, quer dizer, temos uma contradição de um caráter subalterno de um lado e um independente de outro, mas isso provavelmente demandaria um texto inteiro.

Um exemplo mais na contramão seria o da Venezuela, que assumiu uma posição política mais radical e anti-imperialista mas segue muito dependente do cliente norte-americano para comprar seu petróleo.

A realidade não é mecânica, é contraditória – os Estados tem sua própria força e aparatos, bem como os dirigentes tem suas próprias ideias, além de ter seus próprios problemas.

No caso egípcio existia um governo muito próximo dos Não-Alinhados, inclusive grandes inimigos dos Estados Unidos (como a Coreia Popular). Desde 2005 os laços com a Rússia se fortaleceram e em 2008 chegaram a desenvolver um programa nuclear para o Egito, sem grandes perturbações. As posições do Egito também não eram exatamente dos EUA no que concernia a Israel.  Claro que por outro lado Mubarak tinha diversos interesses que coincidiam com os norte-americanos, entre eles o de contenção do Irã enquanto força regional. A própria dinâmica da economia internacional (e egípcia) o inclinava, já que tal dinâmica é imperialista em sua lógica – os Estados tem soberanias, mas de maneira alguma são equivalentes na realidade das relações de força.

Quando chegou a hora de Mubarak ir, os Estados Unidos como de costume buscaram controlar os dois lados, dividir as fichas para não perder todas as apostas. Mesmo a Irmandade Muçulmana (em ascensão em toda Primavera Árabe) era considerada como opção, já que aparentemente a principal preocupação americana na região agora é o Irã e as contradições que geram revoluções xiitas (obviamente também são uma contenção para forças nacionalistas e socialistas mais radicais em seus próprios países). A Irmandade Muçulmana foi e a rigor continua sendo apoiada na Síria contra Bashar Al-Assad. Voltando ao Egito, alguns (tomados por algum delírio nasserista) sugeriram que a busca de aproximação com a Rússia por parte do atual Presidente, Sisi, seria uma fundamental jogada anti-imperialista ou que o Sisi já o teria feito ao derrubar o governo da Irmandade Muçulmana (de Morsi, o que é um simplismo muito equivocado). O fato fundamental, seja com Mubarak ou com Sisi, não é só o dedo americano na política interna, mas o fato do Egito ser principal “base militar” norte-americana na África recebendo grande volume de ajuda militar e sendo portanto uma peça geoestratégica fundamental tanto na África como no Oriente Médio. Só recentemente que Obama buscou controlar o regime (respondendo a opinião pública) cortando fornecimento de armas ao mesmo tempo que criticava a repressão. Sisi buscar a Rússia não é uma ruptura com os Estados Unidos, mas uma contra-chantagem e a busca de uma alternativa inferior, que não consegue suprir o espaço ocupado pelos norte-americanos. Para comprar armas da Rússia, Sisi precisaria dos sauditas, que também são filo-americanos e que provavelmente só realizariam tal negócio para pressionar os norte-americanos. O Egito e Arábia Saudita encabeçam um novo grupo de cooperação militar árabe criado para “conter o Irã” e que já está agindo na forma dos bombardeios sauditas no Iêmem. Os sauditas são outro exemplo, já que no passado não vacilaram em pressionar os Estados Unidos e todo o mercado mundial através seu petróleo por causa da questão israelense. Israel, mais um – sempre receberam grande apoio americano ao mesmo tempo que mantém um espírito rebelde e desafiador em relação ao padrinho (talvez por ter algum poder sobre a política interna do mesmo), uma mentalidade de “nós contra o mundo”, agora epitomizada na teimosia direitista de Netanyahu, que reclama do e para os Estados Unidos insistindo no seu lunatismo anti-iraniano.

O Iraque também é outro caso essencial, onde um governo instalado por uma ocupação passou a fazer “rasantes” fora da esfera de seu patrão. A aproximação com o Irã é inegável, mas ao mesmo tempo o governo e o Estado iraquiano seguem muito dependentes dos norte americanos (é natural já que eles criaram aquelas estruturas)  – o problema para os norte-americanos só cresce na medida que elementos radicais assumem a resistência contra o Estado Islâmico. O caso é que o governo consegue reunir alguma força política pra se aproximar de Teerã, apesar das dificuldades, o que inclusive serve de moeda na hora de negociar com os norte-americanos.

Como podemos ver, tratamos de redes muito complexas de relações e interesses. No caso do Oriente Médio isso é tão claro por causa dos nós que existem na política regional, vistosos quando se trata da questão palestina, onde até Estados pro-americanos se envolvem de maneiras distintas.

Estados e estadistas vão buscar fortalecer suas posições apesar de forças externas, buscando se aproveitar das mesmas nesse sentido, isso está na própria lógica do poder, o que não significa necessariamente cortar os tentáculos ou mudar algumas realidades mais fundamentais. Não serão posições pontuais ou coincidências óbvias que vão determinar quem é dependente de quem, mas alguns pontos mais essenciais e aquele conjunto de relações complexas. Devemos atentar para esses fatores: o que o Egito, a Coreia ou Israel representam para a geoestratégia norte-americana? Isso para se ater ao problema político, sem tocar abertamente nas relações econômicas (que também são fundamentais).

Quer dizer, mesmo marxistas mais ortodoxos tem que tomar cuidado para não cair numa forma de mecanicismo econômico onde se ignora o fator político – onde mesmo um governante colocado no poder pelos norte-americanos e até mesmo com o país ocupado por eles pode tomar certas decisões a revelia de seus senhores. O imperialismo também se vê obrigado a fazer política – seus interesses precisam jogar na política local para triunfar. A sua ação também se vê dividida em várias correntes, entre os interesses de grandes corporações do país, interesses americanos que atuam na área (como petrolíferos), as divisões entre agências do governo e do Estado (como a clássica CIA x Secretaria de Estado, cada um fabricando as próprias revoluções), decisões presidenciais, flutuações da política interna (como decisões parlamentares), e claro, também influenciada pelas facções locais que atuam no país alvo (especialmente de quem tem a ganhar algo com os norte-americanos). Facções americanas diferentes podem gerar políticas contraditórias (como é o caso das divisões em Washington sobre como lidar com a Rússia; divisões entre liberais e realistas no que concernem as relações internacionais). Os norte-americanos lutam até hoje para controlar a Coreia do Sul e manter um equilíbrio que evite ultra-radicais belicistas e pacifistas ao mesmo tempo. Em sociedades mais abertas o imperialismo consegue mais aberturas para atuar na política e no jogo de interesses, justamente por ser uma força muito grande, uma estrutura internacional cujos tentáculos se estendem  pelo mundo. Não podemos reduzir imperialismo a “esse governo manda, aquele ali obedece”.

Os países citados, mesmo quando dominados mais diretamente pelos Estados Unidos, também possuem um nível considerável de autonomia na política externa (e interna…), como o Brasil. Não é isso que servirá de critério na hora de falar de imperialismo, mas toda uma rede complexa e dinâmica de relações, ainda mais no caso do Oriente Médio, onde a questão regional é exacerbada.

O cão raivoso pode estar preso na coleira de um dono, mas o cão e o dono ainda são coisas diferentes.

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