“A China não tem nada de marxista!”

Essa frase pode sair da boca de um esquerdista “purista” ou de um liberal triunfalista, mas em ambos os casos é um equívoco.

Robert Ware é um professor universitário ocidental que deu aulas de marxismo na China. Na década de ’80 ele foi professor de filosofia analítica em Shangai e Beijng, assim como deu aulas sobre marxismo analítico em outras universidades em que não era professor. Em 2007 fez um tour por cinco instituições acadêmicas de Beijing e Shangai, dando palestras sobre marxismo analítico e socialismo libertário. Em 2007 Ware também participou numa conferência da Universidade do Partido Comunista em Xangai, que comemorava os 140 anos da obra “O Capital”, com centenas de economistas, a maioria chineses, e alguns estudiosos de outras disciplinas. Em 2011 deu um curso de Verão na Universidade de Renmin e foi comentador numa conferência dos 150 Anos do Grundrisse. No outono de 2011 ele deu aulas de filosofia e marxismo analítico para alunos de graduação, bem como de marxismo e política radical para pós-graduados. Em março de 2013, Ware publicou um artigo intitulado “Reflections on Chinese Marxism”. É um artigo muito relevante para se tratar da hegemonia marxista na China e nas universidades chinesas, por isso formulei este resumo.

Ware, consciente das críticas que normalmente são feitas a China (e aparentemente ele mesmo não é um entusiasta da linha do Partido Comunista Chinês), observa que apesar do senso comum o socialismo é sim uma poderosa força na China e o marxismo objeto de constantes investigações. O marxismo na China é amplamente disseminado e é o principal paradigma político do país. Ware explica que a maioria de seus alunos, assim como a maioria das pessoas em geral, se dizem socialistas (mesmo que as razões variem e passem por aspectos mais morais e sentimentais, como por exemplo algum antepassado que lutou na Coreia). Quando questionados o que seriam caso não fossem socialistas, não consideram “capitalista” uma opção, mas alguma outra forma de socialismo não-marxista. Ele fazia essa experiência usando o texto de Einstein “Porque sou socialista?”, fazendo a mesma pergunta para os alunos, assim como a pergunta contrária. Ele observa também que existem muitos socialistas fora do partido, especialmente “maoístas”, entendidos aqui como aqueles com simpatias pela Revolução Cultural, dando o exemplo daqueles envolvidos com Livraria Utópica de Pequim, que vende uma variedade de textos comunistas e marxistas, além de realizar leituras de variados temas. A livraria tinha um grande website, mas que saiu do ar após a detenção de Bo Xilai, comunista do alto escalão do Partido. Bo Xilai é outro exemplo, pois gerou uma “corrente de seguidores” que transpõe o partido (inclusive criaram um partido inspirado por ele), que em Chonquing mantinha políticas populares com elementos “maoístas”.

“Com o contato, mesmo superficial, é óbvio que há milhões de
socialistas na China. Havia 20 na minha classe, e se dois terços de
da população adulta é socialista, a China terá cerca de 500
milhões de socialistas. Isso certamente superestima os números de maneira descontrolada,
mesmo para um país com uma Constituição que proclama seu socialismo.  Para uma estimativa mais plausível devemos considerar primeiro que o Partido Comunista Chinês tem cerca de 80 milhões de membros. Há certamente um monte de oportunismo e cinismo entre eles, mas com base na minha  consultas particulares de muitos membros, eu não posso imaginar que mais de um quarto deles iria realmente rejeitar o socialismo, mesmo em seus corações.  Isso deixa pelo menos 60 milhões de socialistas no Partido “

– O Marxismo desempenha o mesmo papel paradigmático que “democracia” no ocidente. Ele fornece uma “rationale” e um tecido de suporte para o sistema, assim como para esforços para melhorar a vida comum (quer dizer, ele é um rationale e um tecido de suporte na sociedade civil também).
– Marxismo e superioridade do socialismo são ensinados desde o jardim de infância.
– Mesmo que uma determinada política seja mais privatista, sempre será justificada em termos de teoria marxista.
– Ele é um objeto de estudos importante nas universidades. Matérias especiais de materialismo dialético e histórico em vários cursos. Cursos especiais para contrapor o socialismo chinês ao capitalismo ocidental, se concentrando no desenvolvimento social do país. Existem departamentos exclusivos de marxismo nas universidades.
– Ele enfatiza o que muitos consideram o calcanhar de aquiles dos chineses: alguns elementos políticos do marxismo tem papel secundário, mantendo a ênfase no materialismo e na crítica econômica básica do marxismo. Usa o termo: “determinismo econômico”. Então, sobra algo mais como doutrina filosófica-econômica, que permite a correta interpretação da realidade para sua transformação, do que uma doutrina ou movimento político, que aliás é um elemento forte no leninismo (talvez por isso os mais “ortodoxos”, “stalinistas” ou não, “radicais”, tenham um certo incomodo com a China que nem sempre sabem explicar). É mais técnico do que político. É mais partido como vanguarda esclarecida capaz de conduzir cientificamente o desenvolvimento econômico (com a libertação como simples consequência do desenvolvimento), “leviatã tecnocrata”, do que aquela coisa do movimento histórico de libertação do (“do” também no sentido possessivo) proletariado (onde o desenvolvimento é mais instrumentalizado).

Lista-se as forças do marxismo na China atualmente:

– Nos números, adesão e conhecimento por parte das pessoas.
– Fortaleza institucional (querendo ou não tudo que é instituição tem nome de socialista, falade socialismo, tem retrato do Marx, o partido é comunista, a constituição é socialista, as escolas do partido ensinam Marx, as escolas normais também, etc). O Artigo 1 da Constituição fala do “Estado sob a ditadura democrática-popular” com base na “propriedade pública socialista”. Os estatos do PCCh o definem como marxista-leninista. Como Fewsmith, que é citado: “O Partido não pode abandonar o marxismo sem desistir de todas suas reivindicações de legitimidade”.
– A cultura de “servir” e “consultar” o povo (os termos são importantes).Lá ainda há a ideia de linha de massas enquanto “sondagem de políticas”, diversos mecanismos socialistas de consulta e participação. Instituto estrangeiro faz pesquisa com chineses e 80% diz que o país está no caminho certo, mesma instituição faz com americanos e só 20% dizem o mesmo sobre os EUA. O autor não é nenhum grande entusiasta, mas se vê forçado a reconhecer isso porque é isso que acontece (algo bem notável no ultimo congresso do partido). Os estudantes Ware em geral expressavam forte suporte ao governo, mesmo tendo ideias discrepantes. Consultas, não necessariamente em forma de referenduns, nos mais variados níveis e sobre os mais variados assuntos, são realizadas constantemente. (alguns marxistas maoistas tem uma análise que eu não consigo compreender – eles, que são marxista, acham que só a chegada do Deng Xiaoping ao poder mudou o caráter do Estado chinês?)
– A cultura de identificar necessidades objetivas cientificamente, de conceber isso, pensar nesses termos. Marx é “universalmente pensado” na China como o criador do materialismo dialético como uma forma científica de socialismo. Marxismo é visto, dito, propagado e difundido como ciência, então podemos dizer com certeza que ele tem autoridade.

O autor crítica o que ele acha uma postura “demasiado soviética” da parte dos chineses em relação ao materialismo dialético como ciência.. são “dogmáticos”, “positivistas” como alguns dizem, “duros”…. “Ciência” com “C” maiúsculo. Observação não tão impressionante vindo de um intelectual ocidental mais ou menos ligado a New Left.

No entanto, o autor diz que o estudo do marxismo lá não é guiado por “dogmas do partido” ou “ortodoxia oficial”. Na verdade ele diz que o partido não tenta manter uma dura disciplina doutrinária (ele descreveu que encontrou uma variedade de posições nas fileiras do partido: críticas a linha do partido atualmente, gente que não gosta de Deng, mais moderação em relação a questão tibetana, etc). Quer dizer, eu entendo isso da seguinte maneira: lá o marxismo é hegemônico. Duas pessoas discordam, ambas são marxistas. Gramsci e Luxemburgo estão lá disponíveis. Marxismo analítico é um campo de produção muito prolífico. O autor mesmo diz que pessoalmente introduziu o debate do marxismo libertário e do anarquismo. Muitas discussões sobre marxismo e moralidade (que eu já tive a felicidade de descobrir na internet, por acaso, coisas interessantes mesmo). Muita produção criativa, como em questões de globalização e pluralismo, bem como sobre confucianismo e marxismo… muitos conflitos também (há o exemplo de um debate onde um professor rechaça a posição do outro como social-democracia burguesa, oportunista, anticomunista, etc). Noções teóricas se enfrentam em conflitos trabalhistas para definir noções justas de distribuição (Mao “servir ao povo”, Deng “enriquecer primeiro”, Hu “sociedade harmônica”, Marx “a cada um segundo seu trabalho”)… inclusive a estrutura econômica sendo debatida, com diferentes correntes de diferentes posições (mais ou menos críticas, dentre as “mais” as que falam de capitalismo com política socialista) – a posição dele é que é difícil precisar porque o sistema muda muito, mas enfatiza o controle do Estado na economia com mecanismos além das empresas estatais e variações regionais que tornam a China mais ou menos socialista. Segundo o professor, a preocupação principal dos marxistas atualmente (que aqui eu entendo que ele se refere aos acadêmicos mas é algo que também notou em seus alunos e em membros do partido) é lidar com a desigualdade social recém surgida. Também a preocupação de se questionar até onde é possível se estender a democracia socialista e fortalecer a participação dos trabalhadores, o que inclusive transpõe o ambiente acadêmico. Ele cita diversos exemplos de debates a respeito que pode presenciar, inclusive intervenções apaixonadas, assim como a presença da questão na televisão e mídia impressa chinesa (fora uma citação de Bo Xilai que criticou a China por ter uma desigualdade similar ao dos Estados Unidos; também é objeto de discussão em congressos do Partido).

“Há diferentes princípios sociais na China que estão vivos nos
debates ideológicos e que vão continuar a lutar pela primazia. Mao Zedong disse para “servir o povo”; Deng Xiaoping disse “vamos enriquecer primeiro”(o país); Hu Jintao fala de”desenvolver uma sociedade harmoniosa”, e disse Marx
“As pessoas devem receber de acordo com o seu trabalho”. Muitas lutas trabalhistas atuais estão sendo travada com base em tais princípios sobre o que uma distribuição justa e equitativa é … “

Me impressiona que no Brasil muitos vejam os “herdeiros do marxismo”  em social-democratas europeus que mal falam de Marx, em movimentos heterogeneos autonomistas como os zapatistas, movimentos “alteroglobalistas”, na Venezuela ou em acadêmicos americanos que falam de sexual liberation mas nada de luta de classes (ironicamente ainda podem criticar os chineses por “esquecer a luta de classes”)… lembrem-se: o maior legado do marxismo na Terra atualmente é a China. É o maior bastião. Esquerdistas podem dizer que a linha do partido é errônea, mas essa verdade é incontestável.

“Em outra área de preocupação, é fácil/comum para os socialistas apelar para
a ênfase de Marx na participação dos trabalhadores e na democracia proletária,
como visto em seus debates com Bakunin. Socialistas chineses estão continuamente
testando os limites da discussão e as possibilidades de candidatos independentes nas eleições. Isso está acontecendo em fábricas, vilas e eleições locais. Todas essas lutas são emoldurados por ideias concorrentes, tornando-se urgente o desenvolvimento de conceitos claros e bons argumentos baseados na teoria marxista “

Na conclusão o autor fala o que já é claro de maneira geral: Na conclusão ele flaa o que já é claro de uma maneira geral: os marxistas chineses estão se esforçando para a China estar de acordo com sua auto-descrição, e tem um forte núcleo teórico ao qual recorrer. Em suma, quando muito “dissidentes” são  “reformistas dentro do socialismo”. Ele só se questiona, porém, se os sucessos do marxismo para trazer desenvolvimento e independência para a China não podem contribuir para o que o mesmo perca relevância.

Nota de experiência pessoal

Não posso deixar de notar que eu, que estive duas vezes na China (em 2011 e 2012), endosso o que diz o autor através das minhas impressões gerais da visita (e das impressões de outras pessoas que conheço). Na livraria são prateleiras e corredores inteiros só sobre Marxismo – retratos de Marx as vezes enfeitam o lugar. Nos livreiros de rua você encontra livros sobre socialismo. As novelas falam sobre socialismo, são revolucionários. Você abre uma inofensiva revista feminina e há lá uma matéria falando sobre o marxismo e as mulheres na China. Tive muitas conversas sobre marxismo e comunismo com “civis comuns”. Um guia de museu discutia “O Capital”(que só leu na universidade, humildemente disse não estudar muito o marxismo), elogiava Stalin por seu papel histórico (especialmente na Segunda Guerra) e falava sobre latifundismo e dependência no Brasil. Vendo nossa discussão, várias pessoas, famílias, se juntavam para ouvir a conversa e fazer as próprias perguntas. Também conheci um homem e seu padrinho (30 e 40 anos), o primeiro mais “liberal”(essas aspas são importantes), o mais velho do tipo que lê o Livro Vermelho antes do jantar – a conversa foi desde a economia chinesa, passando pelo expurgo da “Gangue dos Quatro” até chegar no “qual é seu favorito? Marx, Engels, Lenin, Stalin ou Mao?” (eles perguntaram, e não o turista leviano, já vou adiantando). Em outro caso, um “artista jovem alternativo”(teoricamente um foco de “dissidência”) ficou animado ao ver que eu e meu grupo havíamos adquirido algumas obras de Deng Xiaoping e uma edição chinesa do Capital. Na televisão a mesma coisa, isso para não falar da ideologia em geral. Como diz Ware em seu artigo, apesar de hoje ser mais comum ouvir alguém falando de mercados competitivos, capitalismo e desregular (o que era tabu até os anos ’80), o marxismo continua firme, é fácil e normal pedir um livro marxista em qualquer livraria, “você ainda pode ter discussões sérias sobre socialismo com motoristas de taxi”(Ware).

Um exemplo de produção acadêmica marxista chinesa pode ser visto aqui em Marxismo chinês: o sistema socialista e o sistema capitalista

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