“Se aprendi uma lição, em todos esse anos que tive de desafiar a morte, desarmado muitas vezes, é que o inimigo respeita os que não teme, os que o desafiam.”(Fidel em FURIATI, 2003, pg. 691)

Em 2003 o governo Bush havia incrementado as tradicionais ações anti-castristas, ampliando o número de transmissões de rádio contra o regime para a ilha e os estímulos para a imigração ilegal. Num período de sete meses até abril de 2003 ocorreram sete sequestros de aeronaves e barcos com o objetivo de tomar rumo a Flórida, onde os sequestradores armados e violentos às vezes eram presos mas sempre acabavam liberados e com uma permissão de residência.

A representação diplomática dos EUA em Havana (que não é uma embaixada) intensificou e radicalizou sua função de organizar uma rede de dissidentes. Como foi exposto posteriormente, o escritório entregava diretamente os financiamentos de operações de grupos opositores, incluindo os 22 milhões de dólares que o USAID havia enviado para estes grupos (valor citado por Adolfo Branco, coordenador do USAID para a América Latina, no Congresso Americano no dia 27 de Fevereiro de 2003).  O chefe da representação, James Cason, reuniu 17 chefes de oposição em sua casa no ano de 2002, além de promover reuniões em Havana e outras províncias para ratificar apoio moral e financeiro a grupos diversos, além de recrutar novos dissidentes (entre criminosos e figuras com algum potencial de influência pública, como atuação no campo cultural). Os contatos foram alardeados publicamente e eram articulados em conjunto com a Fundação Cubano-Americana

Fidel Castro, perante a publicização desses fatos e o alarde no congresso americano, chegou a advertir o chefe da representação, que seguiu com as reuniões mesmo assim. Mesmo que em Cuba não se exercesse um controle ideológico extremo, prisões de consciência e até exista algum espaço para visões muito discrepantes contra o sistema (e essa liberdade política vem aumentando), a articulação de uma oposição organizada pelos Estados Unidos era um sacrilégio duplo contra a Revolução – uma oposição organizada ao sistema é inadmissível, pior se essa organização é direta e desavergonhadamente realizada pelo imperialismo. Nos dias 18 e 19 de março foram detidos pela polícia cubana 65 participantes dessas reuniões, posteriormente se totalizariam 75 presos – as penas variaram entre seis e 28 anos de prisão, com os julgamentos focando na rota do dinheiro e nos testemunhos de agentes infiltrados.

O último sequestro dessa onda foi horas antes do julgamento desses dissidentes. Três homens sequestraram uma barca com cinquenta pessoas a bordo, incluindo algumas crianças e turistas estrangeiros. Ficaram sem combustível e, encurralados pela guarda costeira, exigiram uma outra lancha para seguir a viagem rumo a Miami, caso contrário começariam a matar reféns. Os Estados Unidos que tinham o compromisso de colaborar (intercepção de necessário) devido a uma declaração conjunta de 1995 sobre a questão migratória, mas o Departamento de Estado lavou as mãos. Foi depois do resgate que ocorreriam os julgamentos, com quatro cúmplices punidos com prisão perpétua e os três sequestradores com a pena de morte – duas penas excepcionais (os fuzilamentos foram característica do início da revolução, só tendo reaparecido num episódio dos anos 80 em que funcionários de alto escalão foram fuzilados por alta traição e outros crimes, o caso Ochoa-LaGuardia).

O governo Bush havia desencadeado uma ofensiva renovada contra Cuba, cortando todas as linhas de intercâmbio estabelecidas por políticos e empresários com Cuba nos últimos anos, e ignorando os acordos migratórios que haviam sido firmados pelo governo Clinton. A estratégia consistia em acompanhar a crise econômica em Cuba (falta de petróleo), criar uma nova crise de balseiros e ter uma base política preparada para desafiar o regime no momento de fraqueza, sem descartar a possibilidade de intervenção militar direta (esposada pelo na época embaixador dos EUA na República Dominicana, Hans Hertell e o irmão do Presidente, atualmente ex-presidenciável, Jeb Bush) – a invasão do Iraque era fresca e ainda considerada um sucesso (removeu Saddam Hussein do poder, porque não fazer o mesmo com Castro?). Mesmo assim, a onda de repressão e as execuções gerou reprovação de amplos setores das esquerdas e intelectualidades do mundo, inclusive de aliados de Cuba.

A biógrafa Cláudia Furiati (2003, pg. 687), usada como nossa principal referência até agora, cita a justificativa de Fidel:

“[foi] Imprescindível, porque há que acabar com essas ações pela raiz. Ninguém pense que isso não foi bem analisado… Doía-nos, de antemão, lastimar muitos amigos e um grande número de pessoas no mundo, por motivos de caráter religioso, humanista ou filosófico… Questionávamos a pena de morte, ao triunfar a Revolução ou naqueles anos de invasões, guerra suja, atentados? Certamente não… Os movimentos políticos, tanto revoluções como contra-revoluções, tiveram que se defender por algum meio… Olhávamos a questão como de vida ou morte… Se revolucionários não se defendem, sua causa é derrotada e terão que pagar com a própria vida…”

Che Guevara havia dito décadas antes na Assembleia Geral da ONU: “Fuzilamos? Sim, fuzilamos e seguiremos fuzilando enquanto for necessário. Nossa luta é uma luta até a morte.”

Furiati (iden.) explica a lógica da “justiça revolucionária” em termos bem schmittianos: “[ela] pode se mostrar intransigente ou tolerante, digna ou aterradora, dependendo do significado do ato, do contexto e seus possíveis efeitos internos e externos. Constrói, em cada circunstância, uma ética particular, e pauta-se pela necessidade de sobrevivência do Estado. Insere-se, afinal, na lógica da guerra, guiando a política, como a defesa possível – um princípio utilizado por qualquer sistema sob ameaça. Sem proteção, a Revolução cubana defende-se como pode e só. Quanto a seu Comandante, estudando posições e movimentos do adversário, regressava ao front e à trincheira, passado um recado: ‘Jamais se levantará a bandeira branca. Geração após outra, lutaremos contra tropas ocupantes..'”

Qual foi a lógica imposta a Cuba pelo imperialismo, senão a lógica da guerra aberta?

Mais tarde,  Fidel Castro discutiria o fuzilamento dos sequestradores e a onda de prisoes com o biógrafo e jornalista do Le Monde, Ignacio Ramonet. O líder cubano destilou sua filosofia:

“Não me importo que me digam milhões de coisas, porque estou habituado a ataques, e às vezes chegam ataques de todo tipo, alguns tão infames que chegam a provocar náuseas.

A luta segue por esse caminho e é preciso saber reagir. Chega uma hora em que montam nas suas costas. E você diz: ‘Tudo bem, é só uma provocação’. Mas você pode não pode deixar de reagir. De que modo uma provocação busca tais objetivos pode ser contida, e a partir de qual ponto não pode mais ser contida? Eles estavam decididos a fazer tudo o que pudessem para provocar situações…. Então se chegou a um ponto, na nossa opinião, que era o limite para que ainda pudéssemos conter a situação. Esse foi o elemento que determinou nossa reação, o resto é coincidência.

(…)

O inimigo faz também uma luta psicológica. Se o inimigo acredita que você o tolera, se o inimigo acredita que você não faz nada, desencadeia-se nele o que biologicamente se poderia chamar de instinto de perseguição.

Os domadores de leões às se vezes se viram de costas para o leão, usam o látego, o chicote, que faz barulho, e de vez em quando fazem assim, saúdam, buscam os aplausos, e depois voltam outra vez para lá, porque senão o leão reage, por instinto de perseguição. Até um cachorrinho vira-lata, desses mansos, vai começar a latir se você fugir, vai sair correndo atrás de você e pode até lhe morder a calça. Mas, se você se virar, o cachorrinho vai parar e voltar. Isso já aconteceu comigo no mar. As barracudas, os tubarões, quando você os enfrenta, despertam-lhe o instinto de conservação, e isso os faz retroceder. Não há nada pior do que dar as costas ao inimigo, porque ele desenvolve esse instinto de perseguição, isso no caso dos animais selvagens, mas um império é muito mais que um animal selvagem, e a psicologia dos que dirigem um império e manejam suas armas é a dos animais selvagens.

É preciso enfrentar os animais ferozes. Primeiro, o império tem de saber que vai haver luta e que o preço será alto.”

Bibliografia:

CASTRO, Fidel, RAMONET, Ignacio. “Fidel Castro: Biografia a Duas Vozes”,  Boitempo Editorial, 2006, São Paulo, pgs. 402-403.

FURIATI, Claudia. “Fidel Castro – Uma Biografia Consentida“, Editora Revan, 2003, Rio de Janeiro.

Adquira os livros na Livraria da Opera.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *