Em sua magistral biografia intelectual de Friedrich Nietzsche, Domenico Losurdo já encontra nas primeiras obras do filósofo (especialmente O Nascimento da Tragédia, que a rigor é a segunda) um sentido fundamental que perdurará e guiará a trajetória de seu pensamento. Este sentido se apresenta aqui como uma construção do sentido da grecidade e seu caráter trágico.

Para Nietzsche o espírito grego ou a grecidade se caracteriza por um “conjunto de instintos” (entenda-se: irracionais) que se manifestam na vida e na tragédia gregas de uma maneira geral, principalmente através do seu lide com o terrível, a desgraça, o sofrimento, a morte e a escravidão.  Como von Humboldt, nota que a escravidão era “um meio injusto e bárbaro para garantir a mais alta forma e beleza para uma parte da humanidade mediante o sacrifício de uma outra parte” (apud. Losurdo 2009, pg. 24) . Estes instintos ele descreverá exaustivamente no futuro como “instintos senhoriais” ou “instintos superiores”, a exemplo de sua obra “A genealogia da moral”.   Ao fazer isso, Nietzsche pretende polemizar contra a projeção moderna da “serenidade” sobre o mundo helênico e aproveita para atacar filósofos gregos que ele considera decadentes ou “não-gregos”, especialmente Sócrates e Platão, das duas maneiras dando a tônica do anti-racionalismo da sua obra. No que concerne os filósofos gregos como Sócrates e Platão, Nietzsche abominará a obsessão destes com as ideias, com as formas, com o “bem”, seu racionalismo excessivo, “a ideomania de Platão, seu delírio quase religioso com as formas”(FW, 357, apud. Losurdo 2009 pg. 26), concluindo que ambos devem ser excluídos da grecidade autêntica como “sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos e antigregos”(GD, O problema Sócrates, 2, apud. Losurdo 2009 pg. 25). Estes são “desprovidos de paixão”, uma distorção e um aumento desproporcional do “apolíneo” em formas moralistas, e é por isso que dirá no Gaia Ciência que é necessário também superar os gregos. Se a modernidade procura moldar segundo sua imagem ideal racionalista.  Nietzsche faz o mesmo segundo uma postura anti-moderna e irracionalista – o “crime” da modernidade, seu progressismo, sua pretensão na felicidade terrena para todos, na correção do mundo através do saber, numa vida guiada pela ciência, na confiança na bondade natural dos homens tem seu pai em Sócrates (a virtude pode ser ensinada a todos e aprendida por todos – para Nietzsche, esvaziamento do conceito de virtude). Como Schelling, denuncia a vacuidade de um progressismo que ignora o peso de dor e de miséria sobre o qual descansa toda civilização (apud. Losurdo 2009 pg. 24). A grecidade trágica é um antídoto para a modernidade “mole”.

Deve estar claro que Nietzsche quando descreve a grecidade não o faz em tom de denúncia, mas sim de aceitação – é justamente essa aceitação que caracteriza o “senhor” ou, como nesse caso, a “grecidade trágica” que Nietzsche reivindica para si (em Ecce Homo dirá que é o primeiro filósofo verdadeiramente trágico). Nietzsche faz uma apologia à “dureza desumana” dos gregos (em outro momento ele falará do “coração duro” dos vikings).

O Nascimento da Tragédia pretendeu promover “um pessimismo da força, de um pessimismo clássico”, no entanto, ‘o termo clássico não é usado aqui num sentido de uma determinação histórica, mas psicológica’, contrapõe-se ao “romântico” (XIII, 229).

Mais precisamente, a grecidade é uma categoria filosófica…(LOSURDO, Domenico in “Nietzsche – o rebelde aristocrata: Biografia intelectual e balanço crítico”. Editora Revan, 2009, pg. 26)

Contra as “visões otimistas”, Nietzsche defende uma “visão séria da vida”. Não defende uma espécie de “pessimismo cansado”, uma “desilusão com a humanidade”, o que seria na fase mais avançada do pensamento de Nietzsche chamado de um “niilismo passivo”, o que seria um produto decadente da “moleza” moderna que o autor pretende combater. A isto, também no futuro, Nietzsche vai contrapor o “niilismo ativo” e o “amor fati”, aquele que aceita ativamente o caráter trágico da vida, que diz “porque sim!”. O “homem teórico” deve ser combatido pelo “homem dionisíaco”. “O grego não é nem otimista nem pessimista. Ele é essencialmente um homem (Mann), que ousa realmente olha aquilo que é horrendo sem querer escondê-lo de si mesmo”(VII, 77, apud. Losurdo 2009, pg. 85)

A grecidade de Goethe é, antes de tudo, historicamente falsa, e, em segundo, demasiado mole (weich) e não viril” (VII, 778), teria sido essa moleza dos modernos que teria removido da grecidade a consciência a consciência aguda que ela tinha da dimensão trágica da existência. (….)

Na realidade, Schelling já subliminha o “elemento trágico, o traço de profunda melancolia que atravessa o paganismo inteiro”. Quando lemos em Nietzsche que “a civilização grega descansa numa relação de domínio de uma classe pouco numerosa sobre um número de não livres quatro ou cinco vezes superior”(VIII, 60), somos levados a pensar em Wilhelm von Humboldt (…) Por sua vez, Hegel nota repetidamente que o fundamento e a condição da “bela liberdade” grega é a escravidão. (…) se apenas levantarmos o véu da beleza, veremos uma dimensão trágica (….) por exemplo, por ocasião da periódica perseguição desencadeada pelos nobres espartanos, com “desumana dureza”, contra os hilotas.

(….) para compreender o modo de proceder de Nietzsche é preciso inverter o aforismo precedentemente citado, que toma distância de Goethe (e Winckelmann). Posto de novo em pé, o juízo crítico sobre a grecidade cara a estes dois autores deveria soar assim: ele “é, antes de mais nada, demasiado mole e não viril, por isso deve ser considerado historicamente falso”. Em Nietzsche, a grecidade autêntica é construída em contraposição a tudo que há de mole, de flácido e de efeminado no mundo moderno; é dessa denúncia que devemos partir se quisermos colher a trama e o significado do O Nascimento da Tragédia. Para confirmar tudo isso há um ulterior confissão contida num aforismo que, sempre com referência à sua obra juvenil, se exprime assim: “Fico a cada ano sempre mais franco, a medida que meu olhar penetra sempre mais fundo neste Século XIX, neste século de grande hipocrisia moral”(XI, 423-4),  O percurso intelectual é aqui definido com clareza: da denúncia do presente à invocação e transfiguração de um passado bastante remoto.(IBID. pgs. 23, 24 e 27)

Essas considerações se refletirão nos seus posicionamentos políticos, a exemplo da condenação da Comuna de Paris. O mesmo para formular um paralelo da decadência do Antigo Regime através da penetração de ideias decadentes ligadas às Luzes com a decadência da Hélade por um corrosão promovidas pelos filósofos “antigregos” (especialmente no período alexandrino). Nietzsche cria uma linha que começa em Sócrates, passa pelo cristianismo, pelo iluminismo até chegar a todo o pensamento moderno, humanista, racionalista, positivista ou democrático – tudo o que ele rejeitará de uma maneira ou de outra. Nietzsche vai atacar o homem moderno que irrompe a partir do iluminismo, racional e humanista. Consequentemente, vai condenar o progressismo que surge com as Luzes e se exacerba na “esquerda”, da fé no progresso através de constituições e leis, ou da máquina vapor, o telégrafo e outras inovações tecnológicas.  Partindo da crueldade da vida como um fato, atacará este homem como um hipócrita (já que ele mesmo faz parte da crueldade e sua sociedade só é baseada numa escravidão de outra ordem). A isto ele contrapõe justamente a grecidade que aceita o caráter trágico da vida. Cabe citar Noéli Correia de Melo Sobrinho:

“Segundo Nietzsche, as teorias e as ideologias políticas da era moderna estão alicerçadas numa determinada concepção de homem totalmente diferente daquela apresentada pelos antigos Gregos; ou seja, os modernos mostram uma concepção que afirma sobretudo a separação do homem e da natureza, para apresentá-lo como um ser melhor e mais cordato. No entanto, esta seria uma concepção errônea, pois o homem está totalmente imiscuído na natureza: mesmo aquilo que é apontado nele como sendo sua humanidade própria é também um produto da natureza, para não falar das suas explosões de ódio e crueldade que comprovam esse pertencimento inexorável.

Os gregos afirmavam a necessidade e a legitimidade da luta, do combate, da disputa, assim como a alegria proveniente da vitória nesse empreendimento. Hesíodo diz haver uma Éris boa e uma Éris má, a primeira é cruel e aniquiladora, e a segunda opera como um impulso ao trabalho, cujas as fontes são o ciúme, a inveja, a ambição e a vontade de superação do outro que se encontra numa situação melhor. Não se trata aqui de uma luta de morte, mas de uma disputa. A disputa é o fundamentado do Estado grego, e opera como um elemento pedagógico que garante a continuidade da Pólis: a combate é ao mesmo tempo a salvação e a libertação. Por isso também, qualquer excesso de poder, glória ou riqueza, era sentido pelos Gregos como um sinal da inveja dos deuses: a desmedida era percebida como um crime capaz de suscitar o ciúme colérico dos deuses, contra os quais os homens sempre nada podem. Ao contrário, os modernos são os homens da desmedida pois louvam a excepcionalidade do gênio, temem a ambição e a disputa como nocivas, acusam o egoísmo e a inveja como valores negativos e destrutivos.

Todos os gregos almejavam o poder tirânico como sendo a maior felicidade, mas por isso também eles tudo faziam para impedir que isso ocorresse a alguém em particular. Nesse sentido, os legisladores incentivavam as disputas entre os civis para garantir a paz social, isolando o Estado como objeto a ser combatido.

[Aqui, Noéli apontará que os modernos lançam mão da concorrência comercial nesse mesmo sentido, mas dirigidos contra o poder estatal em geral, buscando conter o instinto de poder e tirania contrapondo a este o instinto de rebanho inscrito na valorização da sociedade e no amor à pátria. Considerando que o Estado nasce historicamente como dominação de uma minoria sobre uma maioria, Nietzsche acredita que o instinto de obediência é um dos mais arraigados, sendo que com o avanço do cristianismo e depois da modernidade esse se ampliou em prejuízo do instinto de mando, recalcado, objeto de suspeita e má consciência.]

(…)

Enfim, se de acordo com a observação de Nietzsche o convívio dos homens é sempre marcado pela disputa, que pode ocorrer de maneira selvagem e cruel ou de maneira comedida e funcional, se o poder político nasce também da disputa e da vitória, então, a escravidão como resultado da conquistas e nas suas diferentes formas é também uma determinação necessária da vida social. (…) Na verdade, os escravos são instrumento e função da vida social, e como tal têm uma utilidade, razão por qual não poderiam ser suprimidos. Segundo Nietzsche, a escravidão, ou seja, a existência de homens que são apenas instrumento e função é uma exigência da formação do organismo superior: não há sociedade ou Estado onde não se encontre a escravidão, ou seja, homens submetidos a outros homens.”(MELO SOBRINHO, Noéli Correia de in Introdução aos “Escritos sobre Política” de Friedrich Nietzsche, Vol II “A pequena e a grande política”. Edições Loyola, São Paulo, 2007. pgs. 11-13)

Por fim, a visão trágica da vida diz respeito justamente a vida como um todo e não somente a vida política,, então a rejeição inclui não só a vida intelectual aspectos mais cotidianos da vida individual que também são sujeitos a sistematizações racionalistas, “a vida digna”. A posição de Nietzsche é notável no seu ataque a “doutrina vegetariana”, que seria uma das manifestações “mais bizarras” do “otimismo decadente”, da intenção de modificar a existência humana, de uma forma mais arrogante que coloca em discussão a própria ordem natural em nome do fim do sofrimento.

Bibliografia (é possível ajudar o site comprando nos links abaixo)

Nietzsche – o rebelde aristocrata: Biografia intelectual e balanço crítico, de Domenico Losurdo
Escitos sobre Política, V.2 (link para o Vol. 1), de Friedrich Nietzsche, organizado por Noéli Correia de Melo Sobrinho

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