Rousseau, este típico “homem moderno”, idealista e canalha numa só pessoa, uma coisa ligada à outra, um ser que tinha necessidade de “dignidade moral”  e da sua postura para se suportar, ao mesmo doente de uma vaidade desenfreada e de um auto-desprezo também desenfreado: esse aborto que se acampou no limiar de nossa época moderna, pregou o “retorno à natureza” – para onde desejava ele então retornar?

Eu também falo de um “retorno à natureza”: se bem que isto não seja tanto um “retorno”, mas antes uma “elevação” da natureza e das simplicidades fortes, solares e terríveis do homem, que podem permitir que os homens joguem com as grandes tarefas, porque elas se abandonariam e se aborreceriam com aquilo que é pequeno. Napoleão era um retorno à natureza, in rebus tacticis [nas questões táticas] e sobretudo em estratégia.

O século XVIII, ao qual se deve tudo com o que o nosso século XIX se preocupou e padeceu: o fanatismo moral, o amolecimento do sentimento em favor dos fracos, dos oprimidos, dos sofredores, a raiva em relação a tudo que é privilegiado, a crença no “progresso”, a crença no fetiche “humanidade”, o absurdo orgulho plebeu e ambição ávida de paixão total – ambos românticos.

A nossa aversão à révolution [a Revolução Francesa de 1789] não se deve à farsa sanguinária, à “imoralidade” com a qual ela se desenrolou; mas antes a sua moral gregária, às suas “verdades”, com as quais ela ainda continua de resto a influenciar, à sua imagem contagiosa da “justiça” e da “liberdade”, com a qual ela cativar todas as almas medíocres, à sua maneira de derrubar os poderes das classes superiores. Que em torno dela algo tenha se produzido de maneira tão horrível e sanguinário, foi isto que deu a esta orgia da mediocridade uma aparência de grandeza, de tal maneira que, enquanto espetáculo, ela seduziu inclusive os espíritos mais altivos.

(…)

Que seja concedida aos homens a coragem de seus impulsos naturais.

Que seja refreada a sua auto-desvalorização [não aquela do homem enquanto individuo, mas do homem enquanto natureza…].

Que sejam banidos os contrários das coisas, depois de ter compreendido que tínhamos sido nós próprios que colocamos nelas.

Que seja banida a idiossincrasia social da existência de uma maneira geral [culpa, punição, justiça, honorabilidade, liberdade, amor etc].

Colocar o problema da cultura.

Progresso para  “naturalidade”: em todas as questões políticas, também na relação entre partidos, inclusive entre os partidos mercantis, dos operários e do empresários, se trata de questões de poder – “daquilo que se pode?” e somente depois “daquilo que se deve?”.

(…)

Progresso do século XIX em relação ao século XVIII – no fundo, nós, os BONS EUROPEUS, travamos uma guerra contra o século XVIII. –

1. “Retorno á natureza” cada vez mais decisivo, entendido no sentido inverso daquele que Rousseau atribuiu a isso. Longe do ídilio e da ópera!

2. sempre mais decisivamente antiidealista, com cada vez menos medo e mais zelo, moderação, desconfiança em relação às modificações súbitas, anti-revolucionário.

3. subordinando cada vez mais decisivamente à questão da saúde do corpo a saúde “da alma”: concebendo esta última como um estado que vem depois do primeiro,  pelo menos como condição prévia —

(…)

O homem se torna mais profundo, mais desconfiado, “mais imoral”, mais forte, mais autoconfiante – e nesse sentido “mais natural” – EIS O QUE É o “progresso”….

(…)

contra Rousseau: o estado de natureza é monstruoso, o homem é um animal rapace,  a nossa cultura constituí uma vitória inaudita sobre esta natureza rapace: assim concluiu Voltaire.

Mais natural é a nossa posição em relação a natureza: não a amamos por causa da sua “inocência”, da sua “razão”, da sua “beleza”, nós alegremente a “demonizamos” e a “embrutecemos”. Mas, longe de despreza-la assim, nos sentimentos então mais afinados com ela e mais íntimos dela.”

Friedrich Nietzsche, Fragments Posthumes [Automne 1887 – Mars 1888] Tomo XIII de Ouvres philosophiques completes complètes, Giorgio Colli e Mazzino Montinari (organizadores), Ed. Gallimard, París, 1975. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho, Escritos sobre Política – Friedrich Nietzche, Editora PUC Rio, Edições Loyola (São Paulo), 2007, pgs. 170-182

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *