“Tradicionalismo” é uma palavra de vários sentidos , mas que geralmente não vem acompanhada da palavra “Revolução”. No entanto, Alan Knight, não divergindo muito de estudiosos de movimentos agrários, enfatiza o caráter “tradicionalista” da Revolução Mexicana.

A Revolução Mexicana foi conduzida através de instituições, mecanismos e lógicas tradicionais. Os grupos mais pressionados pela modernização foram justamente aqueles que participaram mais ativamente na violência revolucionária. Revolucionários louvavam a memória de um “passado áureo”, apesar de se tratar de uma mentalidade e não de um programa de restauração desse passado.

Geralmente se exagera o papel dos fatores econômicos objetivos, especialmente os quantificáveis, ao mesmo tempo que se subestimam os fatores morais e fatores relativos a construção da legitimidade de um regime. A questão não é somente como determinadas mudanças econômicas afetaram o nível de vida do campo, mas porque essas mudanças foram consideradas ilegítimas e causadoras de indignação moral.

a) A revolução mexicana não dependeu da organização de grandes partidos de massa baixo a direção de quadros políticos bem organizados ou capitaneados por “empresários políticos”(Popkin). No México não só não havia um partido comunista, como tão pouco houve uma vanguarda liberal, nacionalista e burguesa capaz de mobilizar os camponeses e as massas em geral através de um partido coerente e bem constituído. A autoridade tradicional – caciquista, clerical, corporativa ou baseada em relações pessoais – é que desempenhou o papel preponderante. Pesa aqui é o capital moral e político pessoal de líderes locais. Os povoados com sua estrutura corporativa foram muito mais importantes enquanto forma de organização. Os partidos que existiam, como o Partido Liberal, estavam totalmente subordinados a essa lógica, dependendo de relações patrão-cliente, redes de apoio pessoal, capital moral de membros destacados e subordinado a questões regionais. Naturalmente, os caciques locais poderiam atuar a serviço da contrarrevolução, dos grandes fazendeiros e dos chefes políticos, deixando a liderança revolucionária local vacante para outros que de qualquer maneira construiriam um movimento baseado em sua influência pessoal. O melhor exemplo é o de Pancho Villa e o villismo. Os exércitos revolucionários não tinham caráter partidário (como em outros casos da América Latina, as guerras que geralmente tinham um Partido Liberal de um lado e um Partido Conservador de outro), eram sim vinculados a figuras individuais que deram o tom da guerra de facções depois da derrubada de Porfírio Diaz.

A liderança vagamente unificadora de Madero não foi suficiente para superar essa realidade e a organização partidária só teve alguma relevância para as classes médias citadinas (mas não para a classe média rural, rancheros).

Apesar de ter elementos que geraram uma certa coesão histórica, não podemos falar de um campesinato que age como classe  – as divisões regionais pesavam e o próprio estilo de vida camponês pressuponha um tipo solidariedade tênue (os comunistas chineses operaram a união do campesinato através de organizações de massa – do exército política, do partido e das ligas camponeses). Isso tirando o contexto da vila, da corporação, onde a coesão social e a solidariedade eram bem sólidas.

b) A liderança tradicional fortaleceu e foi acompanhada de uma ideologia tradicional. O protesto era retrospectivo, nostálgico e tradicional, o que não o tornava espontâneo ou apolítico. As queixas camponesas tendem a ser específicas, locais (não nacionais), concretas e segundo juízos de alguma norma retrospectiva. Apesar disso, participação camponesa na revolução dependeu em grande medida da capacidade de organização e articulação de interesses e objetivos em comum. Compartilhavam principalmente de ameaças e inimigos parecidos. A economia moral do camponês forneceu bases normativas para reivindicações revolucionárias. Knight nos dá exemplos de pronunciamentos de camponeses contra aquisição de terras por forasteiros, assim como cita o exemplo dos iaques que reivindicavam todo um vale com base no seu caráter divino.

c) 
As massas camponesas que aderiram ao embate violento foram normalmente aquelas mais afetadas pelo processo de modernização. Surge um maior nível de comercialização da economia, que Knight considera como fundamental no conflito mexicano (fundamental enquanto uma singularidade em relação aos outros processos latino-americanos – em casos como dos países do Rio da Prata, não havia um campesinato constituído como o mexicano, ao passo que no caso do Peru a economia monetária não gerou conflitos, pelo contrário, as comunidades camponesas indígenas das montanhas puderam prosperar).

Terratenentes começaram a predar (como capitalistas) as terras comunais de vilarejos camponeses (nota: nem sempre os vilarejos tinham uma estrutura de propriedade puramente comunal, as vezes só tinham um pasto em comum e lotes separados de terra; no caso de vilarejos indígenas, a regra é que quase sempre que a propriedade seja comunal).

Em Chihuahua e no norte do México, existiam vilarejos militarizados, formados ou por colonos ou por indígenas locais, que recebiam benefícios do Estado (terras, principalmente) em troca de que estes repelissem as incursões de Apaches, no entanto, durante o Porfiriato, os governadores Creel e Terrazas passam a expropriar essas terras (muitas vezes tomando como sua propriedade/ NOTA: a estrutura juridica que viabilizava essa estrutura e a organização de comunidades indigenas como pueblo e estamento separada foi assaltada antes do Porfiriato pela Revolução Liberal).

Casos semelhantes se repetem em todo México, com comunidades que recebiam algum direito especial (privilégio ou prerrogativa) do Estado tendo esses direitos subitamente usurpados.

Índios de Escuinapa chegaram a dizer que “nunca sofreram nenhum incidente até chegada do General Díaz ao poder”.

Outro exemplo de grupo que entrou em conflito com o “novo mundo” são comunidades das montanhas, geralmente liderados por um ranchero local (classe média rural) que tinha as funções de um chefe militar.

As construção de linhas férreas é outro aspecto da modernização que gerou conflitos com os camponeses, como o caso da construção do ferroviária da empresa Coatsworth em Morelos, que enfrentou várias rebeliões agrárias.

As populações camponesas sofreram com degradação do nível de vida e de queda dos salários reais. Isso ocorreu num contexto de decadência e distorção de uma antiga ordem paternalista, com os proprietários renunciando suas obrigações tradicionais a favor de uma lógica mais voltada para o lucro (racionalização capitalista).

Anteriormente, a hacienda era uma garantia de segurança para os trabalhadores residentes (peones acasillados), que habitavam nela e sacrificavam sua mobilidade em prol de proteção e alimentação durante épocas de recessão, graças a seu isolamento da economia monetária. Os peões consideravam o hacendado como um pai adotivo e se identificavam com seu poder e riqueza.

De fato, os que fazendeiros que mantiveram essa estrutura realmente formavam sua própria facção local a partir de seus fiéis peões, que tinham uma postura muito devotada ao proprietário, inclusive cuidando de sua tumba após sua morte.

Os nexos pessoais e paternalistas se debilitaram no fim do século XIX. Aqui o processo de comercialização da economia surge para destruir esses vínculos, gerando, por exemplo, um fenômeno chamado de “ausentismo” – o hacendado não é mais um chefe paternal instalado na hacienda e que tem proximidade física com os peões, mas um proprietário citadino que vive distante de suas terras que são tratadas mais ativamente como um capital. A hacienda passa por ondas de demissões e racionalização econômica.

Essas mudanças se expressam na ideologia da elite modernizadora do México. Suas posições se justificavam tendo o progresso como fim, se balizando numa educação positivista.

A gente de Chihuahua não se revoltou contra as velhas tiranias, mas contra os intentos modernizadores de Terrazas e Creel; os habitantes de Boycona questionavam os benefícios do “progresso”. Em Morelos, o regime paternalista de Alarcón deu passo a administração irreflexiva e implacável de Pablo Escandón – aonde um praticava a moderação, o outro partia para a ofensiva direta, assumindo uma atitude belicosa e desdenhosa para com a população local, se comportando como uma “autoridade colonial” (a tradição mais repressora e militarista do poder colonial).

O trabalhador era tratado como um instrumento de trabalho (os marxistas dirão: “mas o trabalhador é assim no capitalismo”, o que é uma falsa polêmica – estou tratando da concepção ideológicas da elite modernizadora) e era plenamente justificável tirar o máximo possível da maneira mais violenta (por intermédio dos capatazes), o mesmo valendo para o endividamento forçado dos empregados, os barracões, as expropriações e a disciplina estrita.

A exploração se intensificou muito e assumiu a forma de um trato desumano e cruel.

As transformações converteram o germe da revolta política em um forte estimulante da revolução social. A nova atitude desdenhosa, autoritária, dogmática, racista e cientificista não só exacerbou a crescente privação material, mas feriu o psicológico do camponês, ferindo suas noções fundamentais de status, auto-estima e dignidade – a concepção de mundo que sustentava a antiga ordem foi abalada.

Do ponto de vista político, com a centralização dos poderes locais e regionais, a capacidade do camponês de influenciar a política, que já não era decisiva, passa a ser exígua. Essa atitude gerou muito ressentimento e indignação moral frente ao que era visto como injustiça.

Os antigos costumes de respeito cederam a insolência plebeia. A supervisão paternalista e as considerações de estabilidade social passaram para o segundo plano frente o interesse pela otimização dos ganhos, parte da “marcha para o progresso”. O proprietário deixa de ser um responsável dentro de um corpo social para se tornar “mais um indivíduo” atuando no livre mercado, o que justifica o seu caráter impiedoso.

Com o apaziguamento do paternalismo e o desgaste da velha ordem, ficam pendentes a criação de novas formas de legitimidade (reformulação da ideologia hegemônica, estabelecimento de um novo consenso ou renovação do contrato social), prevalecendo a força até a resolução dessa questão, o que é a própria natureza do processo revolucionário – a revolução é assinatura de um novo pacto, escrito com sangue.

A OBRA: Alan KNIGHT, “La Revolucion Mexicana”. Editora Fondo de Cultura Economica, México, 2010.

NOTA (2018): Esta temática define os dois volumes da obra “México: Del antiguo régimen a la Revolución” de François-Xavier Guerra.

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