O “golpe legal” que derrubou o Presidente paraguaio Fernando Lugo (considerado “progressista”) em junho de 2012 mostra agora o seu frutos. Não que Lugo fosse particularmente um inimigo das corporações agrícolas, mas estas, especialmente aquelas relacionadas a produção de soja, vem se mostrando grandes beneficiárias de sua retirada forçada do poder.

Se por um lado Lugo não era nenhum revolucionário, por outro ele certamente irritou certos interesses do agrobusiness por bloquear a importação de sementes de milho transgênico – alguns meses depois do golpe o Ministério do Agricultura aprovou o uso desse mesmo milho. A crise de seu governo teve seu estopim quando no dia 15 de Junho (2012)  300 policiais removeram a força 50 ocupantes de uma terra sem título do distrito de Curuguaty, que resultou em 17 mortos e 20 feridos (incluindo policiais).  A oposição (o Partido Colorado e o Partido Liberal) explorou o acontecimento para acusar Lugo de “incompetência” e levantaram a sombra do “terrorismo” indicando o possível envolvimento do Exército do Povo Paraguaio (Ejercito del Pueblo Paraguayo – EPP) no movimento. Era necessária uma mão mais dura do que a de um social-democrata para deter os levantamentos rebeldes.

Em seguida do golpe e nas vésperas das eleições, oito líderes camponeses foram assassinados. Um clima de terror e intimidação através de forças policiais, militares e paramilitares, somado ao controle da máquina eleitoral pelo Partido Colorado teria sido a fórmula da vitória do novo presidente e o estranho fracasso eleitoral da coalizão de esquerda.

A  ofensiva tem a sua frente o Partido Colorado (que foi o partido de Alfredo Stroessner), que foi recolocado no poder em abril com a eleição presidencial do rico Horacio Cartes. Quando falamos da situação de dependência de países da América Latina, dificilmente há uma separação entre as oligarquias locais e o capital estrangeiro. Horacio Cartes é pessoalmente um exemplo da associação com o capital estrangeiro, que está ligado a toda sua carreira nos negócios, especialmente no que concerne o seu banco, o Banco Amambay – através dele Cartes financiou ou comprou 25 grandes companhias, incluindo a principal fabricante de cigarros do país (Tabesa) . Para alguém que ascende das ruínas de um governo derrubado por juízo parlamentar, Cartes não é do tipo acima de suspeitas. Em 1986, Cartes passou 60 dias na cadeia durante uma investigação de fraude cambial. Cartes teria feito milhões de dólares com um empréstimo do banco central obtido em taxas de câmbio vantajosas, atravessando o dinheiro emprestado nas suas casas câmbio antes de comprar equipamento agrícola norte-americano. As acusações foram retiradas.  Ele foi preso de novo, sob as mesmas acusações, em 1989, durante sete meses, mas foi absolvido pela justiça. No ano 2000 a polícia anti-drogas apreendeu um avião com cocaína e maconha em um dos seus ranchos. Já tendo sido acusado, inclusive por fontes internacionais, de envolvimento com o narcotráfico (a guerrilha chama seu governo de “narcogoverno”, apesar de já denunciar ligações do Estado com o narcotráfico desde antes da ascensão da direita), Cartes alegou que o avião havia feito um pouso de emergência. Cartes também foi implicado em outras “questões financeiras” – o escândalo do Offshore Leaks revelou a relação de uma empresa financeira das Ilhas Cook com o seu banco, e em 2010 o Wikileaks apontou o mesmo como alvo de investigações sobre lavagem de dinheiro. A parte dessas questões de corrupção privada, o homem só entrou na política em 2008, declarando abertamente sua intenção de balancear o avanço da esquerda na América Latina.

Cartes fez amizades internacionais com forças políticas afim de seu estilo e projeto – a Aliança do Pacífico, o Conselho das Américas (presidido pelo multimilionário David Rockefeller e que conta com nomes como o do notório agente da CIA John D. Negropononte) e a Federação das Indústrias de São Paulo (sim, a FIESP, brasileira). Não sei se é realmente necessário discorrer sobre a proximidade do governo com os EUA ou do comportamento de proconsul do embaixador James Tessin, já que a relação fica explicita nas relações econômicas (relações que mostram um governo paraguaio débil e subalterno – uma “opção fácil” para os ianques em comparação ao golpe de Tegucicalpa). A nível nacional (paraguaio) é relevante citar o papel que o conglomerado midiático ABC Color tem desempenhado em seu apoio ao governo.

Cartes já começou o seu mandato com uma “Lei de Responsabilidade Fiscal”, a Lei 5.098/13, que consiste na instauração de uma política de austeridade, que ao mesmo tempo que corta o orçamento impõe limites na arrecadação. Desta maneira, se reforçam os privilégios fiscais de setores lucrativos como a carne e a soja.  Com um rendimento que superou o valor de 10 bilhões em 2013, estes setores (isto é, os proprietários que neles atuam)  só pagaram 2% do total de impostos arrecadados. E não é como se a situação antes fosse “desvantajosa para o empresário”, como nos informa Walter Zarate* – em 2011 o Imposto de Renda de Atividades Agropecuárias (IMAGRO) só representou ridículos 0,45% da arrecadação, enquanto o Imposto de Valor Agregado (IVA) representou 52,2% do total. Segundo este pesquisador, o Paraguai tem uma estrutura tributária altamente concentrada nos impostos de consumo, que totalizam 67,2% das arrecadações, não cabendo nenhum terço disso aos impostos sobre as rendas. A crença de Cartes consiste na ideia de que economizar com cortes sociais é melhor do que afetar as dinâmicas de mercado com uma arrecadação mais sólida.

No campo da repressão, o governo fez alterações na Lei 1337/99, a Lei de Segurança Interna, podendo agora dispor livremente das forças armadas para fins de segurança interna. Houve um grande número de manifestações de diversas composições sociais. Em novembro ocorreram diversas manifestações no Departamento de São Pedro depois que a polícia disparou contra uma manifestação de 200 pequenos agricultores que tiveram suas terras tomadas. Com 4 meses de governo, Cartes já enfrentou manifestações de massa em repúdio a “militarização e perseguições” na frente do palácio nacional. No dia 30 de dezembro, o líder operário Bernardo Rojas qualificou 2013 como um ano duro por causa da perseguição e as políticas de austeridade – condenou a “criminalização dos movimentos sociais” e noticiou a greve geral marcada para 26 de Março de 2014.  Com forças armadas e militares já acostumadas com a Doutrina de Segurança Nacional, cria-se uma atmosfera de perseguição e intimidação aos movimentos populares, especialmente camponeses. As tropas patrulham ostensivamente o campo, militantes camponeses são presos sob acusações descritas como “aberrantes” (caso do masacre a Resitência de Marina Kue) e alguns tombam vítimas de assassinato, como o dirigente rural Lorenzo Areco (Organización Campesina Regional de Concepción), que foi morto no dia 14 de Agosto. As forças paraguaias são reforçadas com armamento moderno e o treinamento direto por forças norte-americanas e israelenses (inclusive acusasse a presença sionista nas regiões da guerrilha do EPP).  O governo Lugo foi inimigo jurado do EPP e vice-versa (o presidente tratava a guerrilha como “problema policial”, sequer reconhecendo o mesmo como força insurgente), no entanto devemos nos perguntar se este recrudescimento com Cartes é produto de uma maior intolerância pessoal (somada as conveniências do estado de exceção, como a supressão da oposição, pelo menos a oposição rural) ou se é produto de um fortalecimento da guerrilha (que até então afetou mais os interesses dos latifundiários e empresas rurais, economicamente, do que as forças militares do Estado). De qualquer maneira, é razoável pensar que nesse contexto de recrudescimento da repressão, a luta armada se solidifique enquanto oposição e enquanto polo de aglomeração política do campesinato e das forças populares.

Fazendo justiça a Cartes frente a possível acusação de “a direita faz cortes do orçamento social mas aumenta o orçamento do aparato repressivo”, informo que isso não é totalmente verdade – aqui também entram “investimentos” de latifundiários e capitalistas internacionais.

Uma das promessas presidenciais de Cartes é a de “aumentar o número de investimentos estrangeiros”. E, de fato, ele vem cumprindo essa parte de seu programa – pelo menos parcialmente, já que o aumento da presença estrangeira não significa necessariamente mais investimentos, ainda mais quando falamos de capital especulativo. O Paraguai aparece atualmente como um dos países mais atrativos para inversionistas do capital especulativo graças a recém promulgada Lei de Aliança Público-Privada. Segundo o Banco Central do Paraguai, o primeiro trimestre de 2013 o fluxo de inversão direta dos estrangeiros teve um resultado negativo de USD -47,9 milhões. Isso só quer dizer que as empresas estrangeiras levaram mais dinheiro que já levam normalmente do Paraguai. Por outro lado, a inflação (oficialmente em 4%) afetou consideravelmente o consumidor comum (que viu aumentos de 3x nos preços), com mais aumentos por vim (combustível e passagens, estas últimas que, como no Brasil, geraram indignação estudantil), enquanto os salários se mantém congelados.  Cartes acredita no papel do setor privado no desenvolvimento da infra-estrutura do país, mas há de se perguntar “como” quando os estrangeiros parecem atentar mais para os setores primários da economia paraguaia. E, diga-se de passagem, apesar do nome não se vê no texto da lei a parte “pública” de tal “Aliança”, que gerou o marco legal para a privatização de recursos estratégicos e empresas nacionais.

O governo tinha expectativas de um incremento do PIB em 12%, mas depois com “maior realismo” se quedaram nos 4% (que no fim das contas são ganhos para a oligarquia local e os investidores estrangeiros). Certo é que as expectativas de inversionistas estrangeiros e de empresas como a Monsanto, Sygent, Agrotec e Dow ultrapassam o otimismo. Entre esperanças e frustrações, é certo que este governo está e estará relaciona com um agravamento dos já graves conflitos sociais do Paraguai. 2% dos proprietários controlam 85% das terras – 20% destes são estrangeiros, muitos brasileiros. Apesar das 300 mil toneladas de soja e das 200 mil toneladas de carne exportadas por ano, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), aponta que 1/4 dos paraguaios passa fome todos os dias (o problema aqui, mais do que “distribuir a soja”, destinar parte dela ao mercado interno ou coisa assim, é a DIVERSIFICAÇÃO DO CULTIVO). A esquerda reclama a perda de direitos civis. 49,9% da população vive abaixo da linha da pobreza (“Panorama Social de America Latina 2012”, CEPAL), e 28% vive na indigência. É certo que processos de ampliação da já grande concentração de terra através de remoções de pequenos proprietários tende a agravar este quadro, já catastrófico devido a condição dos serviços públicos paraguaios (especialmente a saúde e a educação – quem dirá agora com as reduções orçamentárias). Apesar do estilo, é exagerado falar de uma re-edição de Stroessner quando o legado de seu regime se faz sentir há tempos no Paraguai. Se Cartes é realmente, como dizem alguns (José Carlos Lezcano), uma caricatura semi-constitucional do General Stroessner, eu não sei – o que é certo é que Cartes não tem o dinheiro da Aliança para o Progresso e nem uma bagatela como Itaipu para aliviar o impacto da crise social.

Veremos.

*(2010) El Presupuesto y el Gasto Público en Paraguay. (2011) Análisis del Sistema Tributario  Paraguayo. Centro de Análisis y Difusión de la Economía Paraguaya.

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