“Há desacordos e desacordos”, escrevia Pisarev sobre o desacordo entre o sonho e a realidade. “Meu sonho pode ultrapassar o curso natural dos acontecimentos, ou desviar-se para uma direção onde o curso natural dos acontecimentos jamais poderá conduzir. No primeiro caso, o sonho não produz nenhum mal; pode até sustentar e reforçar a energia do trabalhador… Em tais sonhos, nada pode corromper ou paralisar a força de trabalho. Ao contrário. Se; o homem fosse, completamente desprovido da faculdade de sonhar assim, se não pudesse de vez em quando adiantar o presente e contemplar em imaginação o quadro lógico e inteiramente acabado da obra que apenas se esboça em suas mãos, eu não poderia decididamente compreender o que levaria o homem a empreender e realizar vastos e fatigantes trabalhos na arte, na ciência e na vida prática… O desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo se, cada vez que sonha, o homem acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral, trabalha conscientemente para a realização de seu sonho. Quando existe contato entre o sonho e a vida, tudo vai bem”. (PISAREV citado em LENIN, Vladimir Ilitch. Que Fazer?, Capítulo 5, 1902.http://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/cap05.htm)

Estamos envolvidos em aniquilações, mas você não se lembra do que disse Pisarev? Quebrem, arrebentem tudo, quebrem e destruam! Tudo que está sendo quebrado é porcaria sem qualquer direito à vida. O que sobrevive é bom…(LENIN, citado em SERVICE, Robert. LENIN – A Biografia Definitiva, Rio de Janeiro: Diffel, 2007. pg. 372; SOLOMON, G.A., Lenin i ego sem’ia Vol I, París: 1931 pg. 88).

Dmitry Pisarev, um dos ídolos estudantis da década de 1860, incitava seus seguidores a desancar todas as instituições, sob o pretexto de que qualquer coisa capaz de ruir sob a força desses ataques não era mesmo digna de continuar de pé. (…) Turgueniev (um ‘homem dos anos 40′) pretendeu fazer do personagem Bazarov(Pais e filhos, 1862) uma caricatura monstruosa dos niilistas, os quais via como materialistas obtusos, moralmente escorregadios e artisticamente filesteus. Só mais tarde o autor diria que não fora essa sua intenção. Havia um paralelo extraordinário entre Barazov e o ídolo dos estudantes Pisarev. Mas tamanho era o abismo de incompreensão existente entre pais e filhos na vida real, que os jovens radicais tomaram os defeitos de Barazov como se fossem virtudes e o elegeram como o homem ideal. (FIGES, Orlando. A TRAGÉDIA DE UM POVO: A Revolução Russa 1891-1891, Rio de Janeiro: Record, 1999. pg 183)

Dmitry Pisarev(14 de Outubro de 1840 – 16 de Julho de 1868) foi um crítico literário, biólogo e radical niilista russo, sendo considerado pai do que costumamos chamar de “niilismo”(como movimento de combate ao czarismo na Rússia), que consistia na rejeição total das autoridades estabelecidas e de nada(‘nihil’) que não venha da razão. Nascido em uma família da aristocracia proprietária, Pisarev teve a oportunidade frequentar as Universidades de Moscou e São Petesburgo. Foi a principal voz do jornal Russkoe Slovo e contribuia com o Sovremennik, ambos suspensos temporariamente, quando escreveu um artigo contra o governo czarista defendendo outro famoso crítico social, Aleksander Herzen, que não chegou a ser publicado porém rendeu-lhe o encarceramento na famigerada Fortaleza Pedro e Paulo. “A dinastia Romanov e a burocracia de Petesburgo devem desaparecer”, dizia o artigo. No tribunal Pisarev alegou condição nervosa devido o fechamento do jornal e a perda de seu trabalho. Passou a ter proeminência depois da prisão, ironicamente, de onde seguiu escrevendo para o mesmo jornal, escrevendo muitos artigos sobre filosofia e literatura. Boa parte de sua obra(“os melhores anos de sua vida”, segundo Plekhanov) foi produzida na prisão. Mostrava grande sensibilidade em relação à miséria e as consequências culturais dessa realidade, e via o “esclarecimento”, a emancipação do indivíduo de laços irracionais impostos pela sociedade, como o início do processo de superação da mesma – não pode ser exatamente considerado como um advogado do terrorismo dos populistas russos, sendo sim um defensor da “transformação orgânica” da sociedade.

No ano de 1864 publicou a obra “Progresso no Mundo dos Animais e das Plantas”, um ensaio geral sobre a obra de Darwin e que conferiu a Pisarev o título de um dos principais  popularizadores das ciências naturais do início dos anos de 1860, também atraindo muitos jovens para esse campo do conhecimento, entre eles Ivan Pavlov(BABKIN, B.P. 1949; VUCINICH, Alexander. 1988). É importante salientar, porém, que Pisarev só pretendia cria um “manual popular” de evolucionismo e não um corpo doutrinário-ideológico para o futuro. Se considerava adepto de uma tradição intelectual inglesa(da qual ele via Darwin como produto máximo): inducionismo, empirismo, ceticismo e utilitarismo(Bacon, Spencer, Stuart Mill). É importante notar também que, para ele, “filosofia” só é digna desse nome quando é ancorada na teoria e no fato cientifico, considerando Darwin o maior filósofos de sua época assim como “maior poeta’, por considerar a ciência como maior expressão estética possível(conforme citado em VUCINICH, Alexander, 1988. pg. 29 ). Isso colocou o mesmo contra os que ele chamava de “estéticos”, chegando à declarar que numa sociedade em bom funcionamento não existe literatura que não seja científica e informativa, o que levou muitos a considera-lo como um filisteu das artes. V. Zaitsev, próximo colaborador de Pisarev(até o primeiro assumir posições racistas), disse: “Nós estavamos convencidos de estar lutando pela felicidade da humanidade e facilmente daríamos nossas cabeças por Moleschot ou Darwin”(citado em WALICKI, Andrzej. A History of Russian Thought: From the Enlightenment to Marxism, Stanford University Press, 1979  pg. 210). Por outro lado o revolucionário populista Sergei Kravchinsky , autor de um atentado bem sucedido contra o chefe de polícia Mezentsev, distingue os “revolucionários” dos “niilistas” ou “pisarevistas”: “Seria difícil imaginar um contraste maior. O objetivo niilista é felicidade pessoal a qualquer custo, seu ideal é a existência ‘racional’ e o ‘pensador realista’. O objetivo revolucionário, por sua vez, é a felicidade dos outros: por isso ele está disposto a se sacrificar. Seu ideal de vida é o sofrimento total e uma morte de mártir.”(ibid.) Provavelmente Kravchinski desconhecia que, para Pisarev, a “felicidade pessoal” inclui a “felicidade universal”, o triunfo da chamada “existência racional”.

Pisarev pode ser facilmente compreendido a luz da forte influência que recebeu do pensamento darwiniano e da publicação russa de “A Origem das Espécies”. Para Pisarev, nenhuma obra daquele século poderia ser maior contribuição à sabedoria secular. Sua afirmação de que “é preciso golpear” e o que resta é “bom” vem direto de uma concepção darwinista de seleção natural – o que não se adapta não é digno de existir, nesse caso o Império Czarista ao que Pisarev considerava exigências da modernidade e do pensamento esclarecido – o animal deve suportar as adversidades do ambiente, o cientista da crítica e o ser social(governo, instituições, etc) do desenvolvimento da sociedade. Essa noção de “desenvolvimento” por si só já implica em outra concepção de Pisarev proveniente de Darwin(e que influenciou muito o pensamento da época, especialmente o de Karl Marx), uma concepção historicista, ou seja, a vida tratada como um fenómeno de constante mutação(e não uma eternidade imóvel da metafísica, que no caso seria o criacionismo), e a ideia de que esse desenvolvimento se dá devido ao efeito cumulativo de “milhões de pequenas forças e causas”.

Pisarev se identificava com o personagen Bazarov da já citada novela de Turgueniev, pois este coincidia com sua ideia de “egoísmo consciente”. Sobre o personagem, que rejeita a moral e tradição em prol da razão e da ideia de um entendimento cientifico da sociedade, Pisarev diz que seu “empirismo” e “realismo” reduzem todas às questões de principio à preferência individual, não se submetendo à nenhum tipo de regulador ou aos “velhos preconceitos morais”. O personagem é governado pelo cálculo e o capricho pessoal. Em uma de suas falas, Bazarov se define como: “é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio sem provas”.

Pisarev também é um exemplo típico do niilista como decadént de Nietzsche (onde não haverá grande distinção entre o “niilista” e o “revolucionário” como fez Kravchinsky), o igualitário que substitui “Deus” pela razão e mede valores segundo critérios de “utilidade”, “felicidade para o maior número” e “racionalidade”.

Dmitry Pisarev foi amplamente reconhecido como um dos mais astutos e influentes arquitetos do Niilismo russo. O materialismo guiou ele numa consistente, porém um tanto implicita, guerra contra o idealismo metafísico característico dos escritores conservadores e os mais dedicados e belicosos defensores dos valores autocráticos. Uma firme ligação com o positivismo deu suporte a visão dele dos laços estritos entre o crescimento da sabedoria secular e o progresso social, e da relatividade histórica do conhecimento e das instituições humanas. Em adição às bençãos da ciência como uma grande arma na guerra contra o ancíén régime, ele popularizou os valores de Francis Bacon elencou como base cultural necessária para o avanço da ciência. Ele deu ênfase particular em dois valores estritamente ligados ao cultivo do pensamento cientifico, um encorajando o senso crítico – o desafio a todo autoridade intelectual – e o outro colocando a utilidade social como único indicador aceitável do valor de um conhecimento. (VUCINICH, Alexander. Darwin in Russian thought, University of California Press, 1988, pg. 26)

Perfil: 

Nome: Dmitry Ivanovich Pisarev

Nascimento/Morte: 1840-1868

País: Rússia; Império Russo

Resumo Biográfico: Foi biólogo e crítico literário, publicando no jornal Russkoe Slovo (“Palavra Russa”) Foi preso em junho de 1862 ao entregar uma proclamação em defesa de Alexander Herzen e contra o czarismo a um estudante que tinha uma imprensa ilegal – foi condenado a 4,5 anos de prisão.

Ideologia/Posicionamento: Esquerda; Social-Darwinismo; Niilismo russo/Proto-anarquismo; Materialismo/cientificismo (materialismo “vulgar” no jargão marxista; positivista); Utilitarismo social

Esquerda: Apesar de considerarmos a divisão dos espectros políticos limitada, nesse caso, por uma questão de facilidade, é conveniente tratarmos a ideologia como de Pisarev como esquerdista. Era radicalmente igualitário, radicalmente contra o status quo e ia na contramão dos principais valores sociais (como a religião). O fato dele ter se inserido num contexto de antagonismo concreto com o czarismo facilita tal classificação. Pregava a responsabilidade social do indivíduo, dizendo que o único objetivo dos pensadores deveria ser “resolver para sempre a inadiável questão das pessoas nus e esfomeadas”. Essa posição é tomada em “Os Realistas”, onde Pisarev, indo além do “individualismo imoral” descrito em seu elogio a Bazarov (onde ele enxerga a emancipação do indivíduo através de sua autoafirmação), coloca que o intelectual deve a sociedade e portanto tem que retribuir (vale notar que Pisarev não “rompe” com Bazarov, só refina sua concepção – o egoísmo de Bazarov seria a de um “pensador realista” e não do que ele chamava de “estetas”.

Pisarev não era socialista. Os “pensadores realistas”, para ele, não seriam encontrados só na intelectualidade mas entre os capitalistas esclarecidos. Os chamava de “líderes pensantes do trabalho entre as massas”. Considerando as massas demasiado passivas, acreditava que somente um estrato da sociedade educado e financeiramente independente poderia organizar o trabalho das massas segundo linhas racionais e aplicar o que havia de mais novo na técnica. Essa sua posição se relaciona com o fato dele (ao contrário dos populistas) ter a industrialização em alta conta.

Darwinismo: às vezes vemos “social-darwinismo” em conotações de direita, implicando, por exemplo, uma justificativa radical da desigualdade social. No entanto, obviamente este não é o caso. Como foi explicado no texto, sua concepção era social-darwinista por aplicar diretamente as concepções evolucionistas de Darwin no desenvolvimento social, onde os corpos e instituições estão sujeitos a um processo de “seleção natural” darwiniana.

Niilismo russo: Ideologia caracterizada pela rejeição total das autoridades e instituições, assim como de tudo aquilo que não venha da razão. O seu niilismo adquire um papel secundário em relação a um programa positivista, construtivo e moderado mais voltado nas fundações da prosperidade futura.

Métodos: crítica, educação e jornalismo. Pisarev não advogava diretamente e nem fazia parte de um movimento revolucionário. Considerava que em alguns casos revoluções eram inevitáveis, porém se via como um “reformista” e considerava que uma visão “sóbria” e “realista” deveria evitar estes métodos, servindo somente como “último recurso”. Essas posições são expostas em seu artigo programático “Os Realistas”. Desconfiava de ações espontâneas das massas (e das massas em geral), acreditando que a força progressiva se conformava num pequena elite de intelectuais bem educados.

Inimigos: Status quo; Regime Czarista; Monarquia; Czar Alexandre III; Czar Nicholas II; Realeza; Nobreza; Polícia; Monarquistas; Conservadores; Reacionários

Influências: Darwin; Vissarion Belinsky; Nikolay Aleksandrovich Dobrolyubov;Nikolay Gavrilovich Chernyshevsky; Alexander Herzen; Turgueniev (se identificava com o personagem Bazarov, mas sua crítica a outros personagens de outras obras, especialmente aos mais revolucionários, mostra seu interesse); Utilitarismo

Influenciados: Niilismo russo; Populismo russo (movimento de esquerda anti-czarista); Críticos do czarismo; Social-Democracia Russa (marxistas); Anarquismo russo; Revolução Russa

Críticos (concorrentes): Populistas; Social-Democratas (marxistas)

FONTES

WALICKI, Andrzej. A History of Russian Thought: From the Enlightenment to Marxism, Stanford University Press, 1979
FIGES, Orlando. A TRAGÉDIA DE UM POVO: A Revolução Russa 1891-1891, Rio de Janeiro: Record, 1999.
VUCINICH, Alexander. Darwin in Russian thought, University of California Press, 1988.

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