por Friedrich Nietzsche

O capítulo 84 do Livro III de Tucídides é autêntico [este capítulo não é atualmente considerado como autêntico, segundo nota da edição francesa das obras de Nietzsche]. Dize-se que ele não é claro e que seu estilo e seu pensamento revelam uma νεωτερισμός [grego: “inovação”], algo de revolucionário. Eu acho que é porque se fica assustado com os pensamentos contidos nesse capítulo; mas em parte também porque eles não foram bem compreendidos. E assim se deixa escapar um dos raros testemunhos onde Tucídides fala em nome do seu pensamento mais íntimo, e onde ele diz o que é a natureza humana!

O homem é invejoso, hostil por excelência, a sua inveja quer prejudicar; e é por isso que ele não suporta uma situação em que a inveja não tenha força suficiente para ferir a legalidade.

Os homens preferem a vingança ao direito, o ganho egoísta ao invés de uma situação em que não se pode prejudicá-los [uma situação em que não se pode cometer injustiça contra eles] (uma situação em que o homem é um animal dócil e domesticado num rebanho harmonioso); eles colocam Κερδαινειν [grego: “ganhar”, ‘tirar proveito”] antes do υη αδιΚειν [grego: não ser injusto] [quer dizer: antes daquilo que proíbe que se possa prejudicá-los, que se mostra injusto contra eles] – e, no entanto, eles estavam numa situação em que a inveja não tinha nenhum caráter nocivo.

Eles estavam reciprocamente protegidos, estavam resguardados das explosões de malignidade provocadas pela inveja: mas se viam numa situação que não oferecia mais qualquer proteção – porque?, para se vingar dos outros. São precisamente os seus efeitos que eles não podem dominar.

Foi aí que Tucídides apresentou a sua teoria do Estado: ele mostrou também o que deveria ocorrer se o Estado desaparecesse – massacre mútuo e desencadeamento de todos os afetos. Aqui irrompe a natureza humana em toda a sua pureza, no Estado ela se mantém refreada. Por outro lado, a πολις [grego: polis] aparece aqui como não sendo absolutamente um produto dos homens, nem uma maneira engenhosa de instituir uma proteção recíproca dos egoísmos [como no caso do pensamento liberal, do contratualismo, etc]. Tucídides acha que os homens não são exatamente prudentes para tanto, mas são agora dominados pelos seus afetos. O Estado é antes para ele uma instituição divina. Ele deixa transparecer a maior veneração pelas νομοι [grego: “costumes”, “hábitos”, “princípio de repartição”, “regra de distribuição”, “normas”, “leis”; transliterado nomos]. Os homens não podem fundá-las segundo sua Φυση! [physis, “a totalidade de tudo o que é”, referindo-se aquilo que é primário, fundamental, persistente, e também ao desenvolvimento, mudança e renovação constantes, “natureza”]

No Estado, é o direito que reina e não a vingança; cada um está protegido contra a injustiça dos outros e a malquerença não tem qualquer caráter prejudicial. E, porém, os homens destroem, esquecem a sua própria vantagem nele: pelo tanto que a paixão os deixa cegos!

Friedrich Nietzsche, Fragments Posthumes [Automne 1887 – Mars 1888] Tomo II de Ouvres philosophiques completes complètes, Giorgio Colli e Mazzino Montinari (organizadores), Ed. Gallimard, París, 1975. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho, Escritos sobre Política – Friedrich Nietzsche VOL II, Editora PUC Rio, Edições Loyola (São Paulo), 2007, pgs. 146-147

COMENTÁRIO: É necessário lembrar que Nietzsche não é um filósofo de “soluções definitivas”, um filósofo de “Sim ou não?”(Assim Falou Zaratustra, “Das Moscas da Praça Pública”), um fornecedor de verdades. Neste texto ele não está lamentando “a cegueira dos homens” frente a “maravilha do Estado” e também não está negando o Estado com base numa descrição da natureza humana – não está tomando partido. Não existe problema no fato da natureza humana violar a justiça ou a justiça reprimir a natureza humana, Nietzsche, filósofo trágico, não condena nenhum dos dois (natureza ou justiça/Estado) a priori. O amor fati do autor o impele a apreciar a tensão conforme descrita ao invés de buscar soluciona-la. Nietzsche muitas vezes diz que o Estado vai contra o indivíduo, ao mesmo tempo que fala da necessidade do Estado para a cultura, mas em nenhum momento formula, por exemplo, uma ideia de “liberdade individual” genérica como princípio absoluto. A filosofia de Nietzsche não se inquieta com tensões e realidades contraditórias.

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